40 dias de maio

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Quando o vi, pela primeira vez, junto ao jardim da casa, a imagem do jovem pareceu-me totalmente estranha e silenciosa. Apenas o ruído do portão alertara-me para a presença dele ali. Então, fitou-me durante alguns segundos, tempo suficiente para que eu pudesse observá-lo nalguns detalhes; os punhos cerrados juntos às coxas e o balançar lento da cabeça totalmente rapada, tal como se também ele quisesse me conhecer.
Procurei uma comunicação através de palavras, entretanto não obtive qualquer resposta, senão um olhar contemplativo do estranho à minha frente. Depois, tentei me manifestar pela linguagem de sinais, e mais uma vez me vi fracassado no intuito de me comunicar com o homem.
Ele jamais conseguiu demonstrar alguma aptidão e tudo o que eu consegui lhe furtar, durante os vinte e tantos anos de pesquisas a respeito daquela personalidade oculta no silêncio, foi a repetição de alguns gestos simplórios numa evolução lenta e extremamente cansativa.
As pesquisas sucessivas e os constantes estudos no campo da neurociência levaram-me a suspeitar de que o homem fosse vítima de algum distúrbio amnésico, até que casualmente me vi diante da complexidade de um relato que me levou a escrever o presente romance.

Paulo J. S. Milagres


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Capítulo 1


O homem caminhava lentamente sobre o solo seco, empoeirado e semidesértico, de um estreito caminho vicinal a Santa Maria, pequeno povoado do distrito de Ribeirão da Serra, naquela tarde de verão.
Acompanhava-o a solidão, e parecia-se perdido.
As crespas barbas, misturando-se aos cabelos negros e já crescidos, pendiam sobre a gola de uma casimira negra e encardida do paletó que lhe servia de camisa. As pernas das calças, recolhidas em pequenas dobras assimétricas pouco acima dos tornozelos, carregavam o pó do caminho que há muito ele percorria. Mostrava o aspecto ruim, mal-apessoado e triste. Poder-se-ia dizer que ele se trajava do que restara de um terno velho, doado por alguma entidade filantrópica que o socorrera em algum momento.
Tinha os pés descalços, cobertos por uma densa lama ressequida da mistura do suor e do pó da terra.
Os olhos castanhos e semicerrados escondiam, ainda, a inaptidão para observar o horizonte.
Parou, momentaneamente, girou o corpo, e retornou não mais de oito ou dez passadas. Hesitou, levou as mãos em conchas ao rosto, esfregou raivosamente as faces, e, vendando os olhos com as mãos espalmadas, ficou imóvel durante alguns minutos, como se tentasse se esconder de alguma loucura. Depois, destampou os olhos, revoluteou, e iniciou uma corrida frenética pasto adentro, até encontrar um monte de cupinzeiro, onde se assentou.
O calor intenso não o molestava. Ele poderia ter se abrigado sob as árvores de uma espessa mata que margeava a estrada ao norte, e afastada dali não mais do que algumas centenas de metros.
Cerrou os olhos, comprimiu as mãos entre os joelhos, e, como vencido pelo cansaço, adormeceu.
Não se alterou ante o ruído estridente do motor de um caminhão que passou velozmente pela estrada, arrastando atrás de si uma espessa nuvem da poeira que se desprendia do chão, nem se manifestou diante da algazarra de algumas crianças que, em pequena fila indiana, retornavam a casa, caminhando sobre a relva amarelada pelo pó atirado na orla do caminho.
Elas faziam o percurso de volta para casa, depois do período de aulas numa escola rural em que estudavam.
– Olhem lá, o homem mudo!... – exclamou o menino, apontando para o homem. – Vamos negaceá-lo?! – sugeriu.
– Papai já falou para não o incomodar! – interferiu a irmã, demonstrando autoridade sobre os demais.
– Todos os dias ele assenta no mesmo murundu!... – manifestou a menor do grupo sem tirar os olhos do homem. – Vou brincar com ele!... – concluiu, diminuindo a cadência da caminhada.
– Vamos, Mariana, sua mãe vai se zangar! – retrucou a mocinha.
Mariana preteriu a observação da amiga e desviou-se, caminhando na direção do homem. Tinha doze anos. A tez morena misturava-se ao castanho-claro dos olhos e dava-lhe um semblante angelical, enquanto os cabelos despenteados, encaracolados e negros que envolviam o pequeno rosto não conseguiam ofuscar a beleza cabocla daquela menina.
Decidida, ela aproximou-se do homem, postou-se ali, e, ajoelhando-se diante do estranho, retirou a mochila que trazia a tiracolo e depositou-a no chão, ao lado direito do próprio corpo. Depois, girou a cabeça lentamente sobre o ombro esquerdo para observar os amigos, até que eles se afastassem e sumissem na curva do caminho.
Finalmente, a sós com aquele homem, Mariana voltou a fitá-lo silenciosamente enquanto os lábios se moldavam a um sorriso ingênuo de contemplação. Depois, tomando da mochila, abriu-a e retirou um pequeno embrulho contendo o que restara do lanche que a mãe dela preparara para a hora do recreio escolar: uma banana-da-terra frita e polvilhada com um pouco de açúcar, e um pedaço do sanduíche de pão francês com doce de leite. Fechou novamente o pequeno saco e, erguendo a mão direita, tocou levemente na coxa do homem, a fim de acordar o amigo adormecido.
O mudo entreabriu os olhos e manifestou-se através de um sorriso tímido, mas que denotava satisfação de rever aquela criança.
– Trouxe o resto da minha merenda... coma!... – disse ela, mostrando o embrulho que acabara de abrir.
– Hã, hã... Hã, hã... – manifestou ele, entreabrindo os lábios. – Hã, hã... Hã, hã... hã, hã...
Sem hesitar, ele estendeu as mãos, acolheu o lanche que lhe era oferecido, e observou-o minuciosamente.
– Pode comer! – insistiu. – Eu guardei um pouquinho para você... Coma!... Po-de-co-mer! – continuou a menina, silabando, quase em murmúrio, numa tentativa ingênua de se exprimir por mímicas, enquanto gesticulava um suave movimento de abrir e fechar a mão direita junto à boca.
– Hã, hã... Hã, hã... – repetiu ele, mordendo no pão.
Mariana assentou-se sobre os calcanhares e apoiou as palmas das mãos sobre as pequeninas coxas, no momento em que observava fixamente o homem devorando a comida que ela trouxera.
O estranho saciou-se, limpou a boca e a barba com o dorso da mão esquerda, e, fitando aquele pequenino rosto, esticou o braço direito para acariciá-lo, num suave toque de dedos.
Assim, durante alguns minutos, ele parecia-se perdido diante da face daquele anjo que lhe sorria.
– Espere! – sussurrou Mariana, erguendo a mãozinha direita espalmada na direção dele.
Da melhor maneira possível, ela tentava se comunicar com o estranho através das palavras entremeadas de alguns gestos simplórios. Ergueu-se vagarosamente e procurou por alguma coisa na relva. Curvou-se, pegou de um pequenino gomo de cana-do-reino, e ajoelhou-se como estava antes. Desajeitada, tentou girar o pequeno graveto entre os dedos indicadores de ambas as mãos.
– Faz, para mim, faz!... – pediu a menina, deixando o gomo cair de entre os dedos.
O homem entendeu a proposição dela. Enfiou a mão direita no bolso do paletó e retirou um pequeno toco de pau.
– Hã, hã... hã, hã!... – grunhiu o rapaz, forçando os lábios sobre os dentes. – Hã, hã... hã, hã!... – continuou ele, rindo satisfeito.
E, para o deleite da criança, o mudo começou a girar a madeira entre os dedos indicadores das mãos, tal como ela pedira, movendo-os numa velocidade incrível, ao mesmo tempo que balançava a cabeça de forma assustadora tanto quanto Mariana se deixava deslanchar em gargalhadas, no momento em que aplaudia, com palmas, o malabarismo do estranho amigo.
O homem, porém, interrompeu-se abruptamente do que fazia e, desviando-se de olhar para a pequenina, pôs-se a observar um antigo ônibus urbano que trafegava ao longo da estrada, transportando alguns moradores da região.
Imediatamente, ele levantou-se, e, como se fugisse de algo que o aterrorizava, iniciou-se numa corrida na direção da mata, embrenhando-se ali, enquanto se perdia entre os cipós que pendiam das árvores e se misturavam à vegetação rasteira.
Ainda que assustada pela fuga alucinada do amigo, Mariana pegou da pequena sacola, levantou-se, e retornou ao caminho de volta para casa.

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Na sala do escritório da casa da fazenda, assentado junto à mesa, Jeremias lia um jornal quando a pequena Mariana adentrou-se correndo ali. Deixou a mochila sobre a mesa e aproximou-se dele.
– Bênção, vovô! – disse ela, abraçando-se ao homem.
– Deus a abençoe, filha! – respondeu ele, afastando o jornal. – Por onde andou a minha pequenina? – inquiriu, beijando a fronte da neta.
A menina ignorou a indagação do avô, e afastou-se.
– Sabe vô, o Mudo? Aquele barbudo? – indagou ela.
– Sim... o que tem ele?
– Sabe como ele roda o pauzinho?
– Não... não sei...
– Assim, oh!... – disse ela, simulando os movimentos enquanto girava os dedos indicadores. – Ele coloca um toco no meio dos dedos e fica girando... girando!...
– Você não o conhece e não deve se aproximar dele! – comentou o homem, deixando o jornal sobre a mesa. – É muito perigoso, para uma criança, aproximar-se de algum estranho.
– Eu só fui entregar um pouco da minha merenda... – murmurou a menina. – Ele é meu amigo... Não sei por que ele corre sempre que vê o ônibus!... O senhor sabe, vô?
– Talvez se assuste... Não sei. – dissimulou ele. – Mas você não deve se aproximar, sozinha, de pessoas estranhas, entendeu?
– Eu sei, mas quando os meninos vão negaceá-lo ele fica muito bravo, até corre atrás deles...
Mariana pareceu perder-se em devaneios.
– Na primeira vez que ele correu atrás dos meninos eu fiquei quietinha no lugar... – murmurou ela, suavemente. – Ele correu, correu, e depois voltou. Eu estava comendo... e ele ficou olhando para o meu pão. Não sei por que tive pena dele... Então, eu pensei que estava com fome e mostrei-lhe o pão que eu comia.
– E o que ele fez?
– Pegou do pão e ficou parado um tempão com ele na mão! Depois, comeu muito depressa... – sorriu. – A mamãe ainda não sabe, vô, mas sempre guardo um pouco da minha merenda para ele!
– Todos os dias?
– Nem todos, – sussurrou ela, meneando a cabeça. – Às vezes, ele não aparece, aí, eu como o que guardei para ele!... Acho mesmo que ele tem medo do ônibus!...
– A sua mãe sabe disso?
– Eu contei para ela... Só não contei que...
Mariana interrompeu-se. Ela escondera da mãe aquele íntimo segredo: dividira com um estranho o alimento que deveria comer durante o período em que estudava.
– O que não contou? – indagou Jeremias.
– Não falei para a mamãe que dei um pouco da minha merenda... O senhor vai guardar segredo?
– Você acha que não devo contar?
– Sim, vô... Ela vai ralhar comigo!...
– E com toda a razão, não é mesmo?
Mariana abaixou a cabeça, sentindo-se frustrada.
Na verdade, ela queria partilhar com o avô aquela atitude de altruísmo que, embora ela ainda não soubesse definir, levava-a a agir com um sentimento de zelo e total abnegação do próprio alimento em favor do desconhecido.
Timidamente, voltou a fitar o avô, desviou-se de olhá-lo e, aproximando-se da mesa, moveu a mochila enquanto tentava soltar a presilha que a mantinha fechada.
– Tenho pena dele!... – murmurou a menina. – Acho que ele não escuta... e só fala hã...hã...
Jeremias pôs-se em pé e aproximou-se da neta, que tentava se acomodar na cadeira junto da mesa.
– Vou guardar segredo, – sussurrou ele, deixando o jornal sobre a mesa. – mas você tem de prometer que não vai procurá-lo quando estiver sozinha, está bem?
– E se ele ficar com fome?! – retrucou ela.
– Certamente, encontrará comida em outro lugar!
– Melhor eu contar para a mamãe...
– Você não me pediu para guardar segredo?
– Pedi... Não é só a merenda... eu acho bonito quando ele roda o pauzinho entre os dedos!... – comentou, retirando um caderno, dentre outros, da mochila. – Sabe, vô, ele fica muito feliz enquanto roda o toquinho!...
Jeremias tocou levemente com os dedos nos cabelos da menina e retirou-se, em seguida, para o interior da casa.
Mariana, enfiando a mão novamente no interior da bolsa, voltou-se para observar o avô que se afastava. Em seguida, ajeitou-se na cadeira, retirou um rústico estojo escolar e, abrindo-o, pegou do lápis e da borracha. Abriu o caderno, empurrou a caixa com a mão esquerda, e começou a escrever, como o fazia todos os dias após retornar da aula.
Era uma criança estudiosa e cônscia das obrigações escolares e, por isso, sempre obtinha as melhores notas nas provas invejadas pelos colegas.
Escreveu durante algum tempo e afastou o caderno depois de deitar o lápis no vinco central entre as folhas. Na realidade, a pequena Mariana ainda tinha o pensamento voltado para o estranho amigo, enquanto se arrependia da confissão que fizera ao avô sobre aquele relacionamento. A personalidade dela não permitiria que escondesse da mãe aquilo que relatara ao avô, uma vez que o íntimo segredo acabara de ser revelado.
Com os cotovelos apoiados sobre a mesa e as mãos em conchas envolvendo as pequeninas faces, Mariana, em completo silêncio, ensaiava mentalmente as palavras com as quais revelaria para a mãe os motivos que a levaram a dividir o lanche com o homem que não conseguia falar. Sentia-se culpada, não pelo fato de ela ter se aproximado daquele estranho, mas por violar a determinação da mãe de que ela deveria comer toda a merenda que levava para a escola, um cuidado materno pela alimentação da filha que nascera antes de completar os nove meses de gestação.
Jeremias retornou à sala e encontrou a pequenina neta imersa em pensamentos. Embora ele fosse um homem de origem cabocla e vivesse do cultivo da cana-de-açúcar, era inteligente, estudioso das técnicas do plantio e de vasto conhecimento de história e de geografia, fato que o levara a se preocupar pela formação dos filhos. O relacionamento contínuo com as mais diversas pessoas, ao longo dos anos, abriu-lhe o entendimento da alma humana. Assim, pouco a pouco, aquele homem de semblante rude foi ajuntando um conhecimento capaz de permitir-lhe analisar furtivamente a personalidade daqueles com quem conversava, no momento em que, trocando o silêncio e a escuta pela fala, penetrava sutilmente pelos caminhos da psicologia. Às vezes sereno, às vezes ríspido, não conseguia esconder uma energia capaz de sondar os mais ocultos segredos da alma. E tudo isso o fascinava.
– Em que pensa a minha netinha? – indagou ele, em meio a um sorriso que lhe era peculiar.
Mariana tirou as mãos do rosto e voltou-se.
– Eu vou contar à mamãe, vô! – murmurou.
– Contar o quê?
– Da merenda que dei para o Mudo!
Jeremias sorriu e aproximou-se.
– Não precisa contar... – disse ele, tocando novamente nos cabelos da menina. – Você não disse que era segredo?!
– Agora já não é mais... não sei por que contei para o senhor... Fiquei com pena do homem...
Lentamente, Jeremias ajoelhou-se, como se quisesse equivaler-se à neta na estatura. Ele conhecia muito bem o caráter de Mariana e ensinara-lhe que olhar nos olhos das pessoas com quem se dialoga é a única fórmula capaz de transformar as palavras num colóquio objetivo e sincero.
– Você quer saber a minha opinião? – indagou ele.
– Eu já decidi, vô, eu vou contar a ela!
– Você faz bem, minha querida... – murmurou. – Não devemos permitir que algum tipo de preocupação interfira no nosso sossego!... Melhor que ninguém, a sua mãe saberá entender a sua generosidade.
Numa atitude de extremo carinho, Jeremias acariciou a cabeça da menina, como se quisesse esconder os dedos em meio aos encaracolados que envolviam aquela pequena cabeça. De há muito ele acostumara-se a esse gesto de zelo, talvez como um antídoto contra um mal que rondara a criança, ou, ainda, como limiar absoluto para mantê-la viva, logo após alguns dias de um parto de grande risco.
Mariana necessitava desse carinho, como um liame da vida. De algum modo, aqueles simples toques e afagos, aos poucos, foram se impregnando na mente daquela criança como excitadores responsáveis pelo envio das mensagens para serem processadas num cérebro de um organismo em precária formação.
– A verdade é a maior companheira da paz! – falou. – Jamais se esqueça disso!
– Eu sei, vovô, por isso fiquei pensando que...
– O quê?
– Não sei... uma coisa boba!
– Diga!
– O senhor não vai se zangar?
– E por que me zangaria?
– A minha merenda eu posso dividir com o mudinho, mas a comida não é só minha!...
O homem esboçou um sorriso de contentamento. Ele acabava de perceber a proposição da pequena Mariana antes que lhe fosse revelada. Era um sorriso que fluía da alma no momento em que coroava o êxito de uma educação que não poupara aos filhos e agora sentia florescer na personalidade de uma garotinha de doze anos.
– Você quer que... – murmurou o homem, sentindo a dificuldade em pronunciar as palavras que se prendiam na garganta. – Você está pedindo para...
Mariana desceu da cadeira e colocou-se em pé junto do homem.
– Quem sabe ele poderia comer, de quando em vez, aqui em casa?!... – indagou ela, tentando mostrar a solução para o impasse que a envolvia. – Assim, ele não ficaria com fome e eu não teria de dividir a merenda!...
– E quanto à sua mãe?... – indagou Jeremias, tentando prolongar o diálogo, mais pelo propósito de ver a reação da neta. – Você acha que ela ficará triste quando descobrir que você fez alguma coisa que não devia?
– Mamãe não vai descobrir!... – asseverou Mariana. –Eu mesma vou contar a ela, o senhor se esqueceu do que eu falei?
– Não... Eu não me esqueci! – sussurrou, roçando os dedos na face esquerda e no queixo. – E onde o vô Jeremias entra nesta história?!
– O senhor... o senhor não vai se importar de dar um pouco de comida, vai?
Jeremias pareceu se perder em divagações, e silenciou durante alguns minutos. Mais que simples conhecedor dos mistérios que envolvem cada ser humano, como todo bom administrador ele aprendera a conviver harmoniosamente com todos os boias-frias, os cortadores de cana-de-açúcar, homens e mulheres que traziam, além da necessidade de trabalhar para o sustento das miseráveis famílias, os mais diversos e inimagináveis conflitos existenciais, motivos ímpares e responsáveis pelo desentendimento entre alguns trabalhadores que, vez e outra, acabavam se ferindo em brigas corporais durante o dia de trabalho. Outras vezes, era comum aparecer entre aqueles que buscavam o trabalho temporário durante a safra, um e outro que se apresentavam como andarilhos que trocavam o prato de comida por meio dia de trabalho. Estes, diferentes dos fichados na fazenda, prestavam valiosa ajuda no carregamento dos caminhões que transportam a cana até as usinas, e, após se saciarem, tornavam ao caminho que lhes era destinado.
Mariana, ainda fitando nos olhos do avô, aguardava silenciosamente a manifestação a respeito daquela ingênua proposta.
– Você não acha melhor terminar o dever de casa, em primeiro lugar, antes de resolvermos sobre a melhor forma de agir nesta situação? – perguntou ele.
– Isto significa que o senhor precisa de algum tempo para pensar, vô? – redarguiu a menina, sorrindo docemente.
– Sim... Quero dizer... É mais ou menos isto!...
Jeremias abriu os braços para a menina, que se deixou abraçar enquanto beijava ternamente a face esquerda do avô e esquivou-se em seguida. Vagarosamente, ela afastou-se alguns centímetros, apenas o espaço suficiente para abrir os braços, e, como num ritual solene, estreitou aquele homem entre os braçinhos e o pequenino corpo, numa adesão total e sublime.
– Amo você, sabe vô? – disse ela, desabraçando-se do homem, no instante em que voltava a ocupar o lugar na cadeira. – Bem sei que o senhor tem soluções para todos os problemas!... – concluiu ela, pegando do lápis e do caderno.
Ele, porém, não teve pressa para se levantar. Colocou as mãos sobre as coxas ainda flexionadas sobre os joelhos apoiados no chão assoalhado de tábuas corridas, deixou que as pálpebras se pendessem sobre os olhos e permaneceu, sem se mover, tal como se orasse silenciosamente durante alguns minutos. Depois, ergueu-se e, curvando-se sobre a cabeça da menina, beijou os cabelos, e saiu para o terreiro na parte frontal da casa, tentando evitar qualquer ruído que pudesse interferir na concentração da Mariana.
Jeremias observou o relógio de pulso, que marcava cinco horas e vinte minutos. Era um homem extremamente metódico e calmo, embora severo e fiel às tradições que herdara dos ascendentes.
Diferente do normal, naquela tarde, aquele homem de origem cabocla, em cuja aparência ainda podia-se notar a pele morena e os cabelos negros e lisos, traços marcantes da união de brancos com índios, resolvera antecipar um dos compromissos diários.
Caminhou lentamente algumas centenas de metros no sentido norte da casa até as margens do rio onde havia um pequeno desnível do terreno que propiciava a formação de uma cascata, pelo excesso da água que vazava sobre uma discreta barragem feita de pedras. Atravessou o rio, sobre a laje, pisando cuidadosamente para não correr o risco de escorregar e aproximou-se de uma rústica comporta feita de madeira de lei, que se movia ao girar uma roda presa na extremidade de um grosso parafuso.
O açude, ainda remanescente da cultura dos avós de Jeremias, fora construído no intuito de desviar parte das águas do ribeirão para ser usada como força motriz de um moinho e, também, para gerar a energia elétrica consumida na sede da fazenda e nas casas adjacentes, residências dos colonos.
Jeremias girou lentamente a roda, liberando um maior volume de água que corria por uma vala escavada na terra, a qual media dois metros de altura numa largura de setenta e cinco centímetros meticulosamente demarcados ao longo de quase quatrocentos metros. Dali, a água era canalizada num tubulão de vinte polegadas de diâmetro, que pendia em um declive de aproximadamente seis metros, até bifurcar-se em dois registros que regulavam o fluxo da água em canos separados e direcionados para o moinho, e para a sala do gerador elétrico.
Durante algum tempo, ele observou o fluxo da água, e comparou a altura da comporta numa escala fixada na parte superior de uma corrediça de metal bruto. Depois, resolveu vistoriar a vala, percorrendo lentamente toda a extensão da margem, até chegar junto ao tubulão, no mesmo ritual de averiguação que fazia há tantos anos.
Era na sala de geração elétrica que ele distribuía a energia, através dos disjuntores montados num quadro de barramento afixado na parede, para cada um dos setores de consumo, e, ainda, controlava a carga elétrica destinada aos colonos, que tinham a eletricidade nas casas apenas no período noturno. Na realidade, a iluminação era oferecida aos empregados gratuitamente, mas restrita.
Jeremias retirou o molho de chaves preso no cinto, escolheu uma, abriu a porta da sala do gerador, e, depois, dirigiu-se imediatamente na direção do painel de controle de energia. Acionou algumas chaves blindadas, e começou a manipular alguns disjuntores enquanto ia conferindo a voltagem e a amperagem destinadas a cada setor, numa operação lenta e consciente.
Terminadas as operações, ouviu o ruído do gerador num zumbido que se misturava ao chocalhar da água nas paletas da pequena turbina, e saiu, fechando a porta da sala em seguida.

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Um comentário:

  1. Oi Paulo. Parabéns pelo seu blog. Agora vc acaba de abrir uma porta para o mundo. É a oportunidade para que seus leitores acompanhem e conheçam melhor vc e suas criações.
    Felicidades e muito sucesso

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