Jonathan não se sentiu logrado da sua rogativa. Era a terceira vez, naquele dia, que ele entrava na agência bancária, dividido entre a expectativa de conseguir o dinheiro para cobrir um cheque e o medo de que o banco efetivasse a devolução daquilo que originariamente seria uma ordem de pagamento a vista. Um cheque pré-datado que, meses antes, ele havia trocado com um agiota, para honrar o pagamento de um outro empréstimo. Aproximou-se da mesa do gerente, puxou a cadeira, e assentou-se, sem a menor formalidade.
– Tem certeza, caro Manoel, de que o cheque não foi devolvido?
– Absoluta! – respondeu o gerente, sem se mover.
– Posso ficar tranquilo?
Não obteve resposta. Também, não quis molestar o amigo mais uma vez. Limpou o suor da fronte, com um breve passar das mãos, e ergueu-se novamente para reiniciar uma sofrida via-sacra no intuito de angariar algum dinheiro que pudesse suprir aquela única conta corrente bancária que ainda lhe restava, já ameaçada do encerramento definitivo.
“Se perco esta conta estou ferrado.” – pensou ele, enquanto saía da agência.
Não conseguia trabalhar. Ao longo dos anos a mesma coisa: um novo empréstimo para pagar o anterior, e a cada cheque passado a um novo agiota ele sentia o aumento extorsivo da dívida... mas o cheque era o único documento que ele usava sem a necessidade de um avalista.
Fazia dois dias que o cheque vencera e, no entanto, ainda não tivera notícia de que ele fora pago ou devolvido.
“Talvez alguém tentara descontá-lo diretamente em um dos caixas...” – pensou, enquanto se culpava pela falta de cuidado em indagar, também, dos demais funcionários.
Por um instante duvidou da afirmação do gerente e quis voltar ao interior do banco, afinal ele deixara a agência sem a resposta concreta da sua última indagação. Sentiu-se enlouquecer e retornou alguns passos na direção do banco. Deteve-se momentaneamente. Não deveria incomodar o seu amigo com novos questionamentos. Talvez fosse melhor deixar que o banco devolvesse o cheque. As ameaças do agiota terminariam com a perda do crédito, mas ele poderia propor o pagamento parcelado da dívida. Aliviou-se, por um momento, mas o reboliço mental atacou-o ao se lembrar de que isso acarretaria na perda da sua conta bancária. De forma alguma ele poderia faltar àquele depósito, mesmo que ele tivesse de esmolar pelas ruas da cidade.
Desanimado, ocupou uma cadeira junto a uma das mesas de um bar, numa esquina próxima. Era preciso colocar os pensamentos em ordem, para continuar a agir. Por um instante, lembrou-se de que era sexta-feira e de que faltavam poucos minutos para a agência bancária encerrar o expediente daquela semana. Depois, pensou em sumir, desaparecer dali... Fingir que tudo estava sob controle e retornar ao trabalho. Mas, como trabalhar com o pensamento num bendito cheque a que deveria suprir? Pediu uma garrafa de água mineral e bebeu como nômade que, atravessando o deserto, saciasse a sede num oásis qualquer. Olhou no relógio afixado na parede, e gemeu: “caramba, não dá mais tempo.” Nada mais poderia fazer, mesmo que conseguisse o dinheiro para o depósito. A agência fechara há cinco minutos.
Retornou ao trabalho. De qualquer modo, poderia aproveitar o final da semana para colocar algum serviço em dia. Assim, receberia pelo trabalho e já teria algum valor para alimentar a sua conta corrente na segunda-feira, quando tudo começaria novamente. Olhou para o serviço, já adiantado, e calculou o tempo para executá-lo. Sem a necessidade de se afastar novamente da oficina, poderia terminá-lo no máximo num período de dez horas. Poderia trabalhar, como sempre o fazia, durante um bom período daquela noite e entregá-lo na manhã seguinte. Animou-se.
Tomou um pequeno lanche e trabalhou. Trabalhou com afinco e nem se lembrou de que o ruído das máquinas e as batidas da marreta nos perfis de ferro laminado poderiam tumultuar o sono dos vizinhos. Ninguém poderia admoestá-lo. Afinal, ele estava apenas labutando para cobrir um cheque sem fundos que, não sabia o porquê, ainda não aparecera na conta corrente. Trabalhou até pouco mais das três horas da manhã, na verdade, quase quatro horas, e resolveu dormir um pouco, com o firme propósito de retornar à oficina logo com o amanhecer daquele sábado. Abaixou a pesada porta de aço e recolheu-se para o merecido descanso.
Duas horas de sono fora o suficiente.
Terminar o serviço era fundamental. Instalá-lo antes do meio dia, mais que urgente. O local da entrega não distava mais de vinte quilômetros, numa cidade circunvizinha.
Ergueu a porta, ajoelhou junto da mesa, e orou como de costume, pedindo a Deus proteção para si e para a família. Mal acabara de se levantar e ouviu o roncar do motor de um carro que estacionava na frente da oficina. Afastou-se um pouco e vislumbrou o rosto de um vizinho que se dirigia à fazenda.
– Bom dia, Pedrão! – exclamou feliz, embora pudesse perceber que a feição do amigo não era das melhores.
– Diga-me uma coisa... Você não dorme?
– Claro!... – fingiu não entender. – Por quê?!...
– Ouvi as pancadas no ferro a noite inteira!...
– Caramba, cara, você escutou mesmo? Então, quem não dormiu foi você! – riu-se.
Pedrão maneou a cabeça, gesticulando um profundo descontentamento e, soltando o freio do carro, deslizou rua abaixo até sumir-se na esquina.
Entretanto, Jonathan, determinara-se a terminar o seu trabalho, e não se sentiu molestado. Sorriu, zombeteiro, como se questionasse a falta de solidariedade do vizinho que se aborrecera por causa de algumas leves e pequenas marteladas durante a noite, e reiniciou as atividades.
Certificou-se de que havia combustível suficiente no reservatório do carro, para a pequena viagem. Menos de um quarto do tanque, mas Deus ajuda a quem trabalha, e tirou o veículo da garagem.
Retocou alguns pontos da pintura, amarrou o material no bagageiro sobre o carro. Depois, ajuntou as ferramentas na caixa, separou duas máquinas de furar, dois ou três sacos de plástico contendo alguns parafusos e buchas, mais um monte de parafernálias, e acomodou tudo no porta-malas.
Estava pronto para entregar o serviço. Foi até a casa para avisar a mulher que retornaria logo depois do almoço e dividiu com ela os trocados que ainda tinha no bolso. Tomou um pouco do café e saiu.
Sentia-se bem, e agradeceu a Deus pela misericórdia infinita, enquanto se dirigia à rodovia. Abriu o porta-luvas e retirou uma fita cassete que havia comprado de um grupo de jovens latinos de países diferentes, mas que viajavam pelo mundo divulgando as músicas, ou, mais provável, buscando se sustentar com o ganho nas vendas das fitas que eles próprios gravavam. Introduziu o cassete, ligou o rádio e cantou com eles, enquanto tamborilava com a mão direita no volante. Excitou-se e cantou mais alto, mas nada conseguia lhe tirar a atenção na estrada. Percebeu a presença de uma mulher que atravessava as pistas no sentido diagonal e tocou levemente no freio para diminuir a velocidade. Movimentou rapidamente a alavanca do câmbio da quarta para a segunda marcha, e freou com mais vigor, quando se aproximou da mulher, que demonstrava impedida do raciocínio, mas não deixou de cantar com o rádio no momento em que passava lentamente por ela. Na verdade, Jonathan trazia na alma uma euforia contagiante, como se estivesse prestes de ganhar mais uma batalha que travara pela sobrevivência comercial.
Parou na frente da loja, estacionou cuidadosamente o carro, e foi logo adentrando-se na casa procurando pelo dono, que ainda não havia chegado. Voltou ao carro, desamarrou as peças presas no bagageiro, colocou-as junto de uma das portas tomando o cuidado para não impedir a passagem de algum comprador, e descarregou tudo o que trouxera no porta-malas. A ausência do titular não o impediria de iniciar a montagem e pôs mãos à obra.
Mediu em todas as direções, achou o que seria a parte central da loja, riscou na parede, nivelou, mediu novamente, confirmou meticulosamente a altura, o centro, o nível e furou. Furou com um martelete da bosch que lhe custara quase cem mil cruzeiros, mas que não se intimidava ante qualquer tipo de pedra do concreto armado, mesmo que chamasse a atenção dos transeuntes das imediações pelo ruído das onze mil vibrações por minuto que o faziam socar contra a parede. No fundo, no fundo, orgulhava-se de ter aquela máquina e nem se importava com o suor que lhe corria pelo rosto por causa do esforço físico que fazia ao sustentar aquele pequeno monstro elétrico. Tampouco se incomodava com a mistura da poeira que o vibrador fazia se elevar, arremessando-a contra o rosto e a camisa já encharcada pelo suor. Ele continuava furando ritmicamente até completar uma série de furos que receberiam as buchas de plástico. Tentou descobrir o horário, bateu a poeira da camisa, e limpou o rosto com as mãos impregnadas de pó, depois de deixar a máquina ao lado da caixa de ferramentas. Olhou no relógio eletrônico instalado ao lado de um canteiro de flores no jardim da praça, o qual marcava dez horas e trinta minutos.
Olhou mais uma vez para o interior da pequena loja, procurando pelo titular da casa. Observou a mesa repleta de papéis e a cadeira ainda desocupada, e preocupou-se. Mais de duas horas de trabalho e nenhum sinal da figura principal: o proprietário da loja, única pessoa que faria o pagamento pelo serviço executado. Por um momento, sentiu um frio correr-lhe pela espinha, ao pressentir o inusitado.
“Só falta esse filho da... esse filho de Deus não aparecer hoje!...” – pensou, retificando um palavrão preso na garganta.
Estava tenso demais para xingar, e imergiu-se de novo na labuta. Ademais, ele aprendera a ter pensamento positivo, e começou a repetir silenciosamente o que memorizara: Deus supre, agora, todas as minhas necessidades... Deus supre, agora, todas as minhas necessidades... Ai!... caramba!...
O martelo resvalara, na batida, e acertara-lhe o dedo. Mas, nem por isso se intimidou. Esfregou o dedo, quente e latejante, na altura da coxa e continuou a aparafusar as peças até que, finalmente, concluiu o serviço. Faltavam dez minutos para o meio-dia. E o homem da loja não chegava. Manteve-se calmo, o mais calmo possível. Talvez fosse melhor perguntar ao funcionário, que durante toda aquela manhã se mantivera discreto e não o incomodara, sobre a ausência do patrão, mas abstivera-se pelo medo do previsível: o patrão teve de viajar e só retornará na segunda-feira!...
Lentamente, muito lentamente, começou a ajuntar as ferramentas e recolocou-as junto das máquinas no porta-malas do veículo. Catou, do chão, alguns parafusos e buchas que haviam se desprendido na hora da colocação, enfiou tudo num pequeno saco de plástico, e colocou no bolso das calças.
Precisava se lavar e, informando-se sobre o local com o balconista, usou o lavabo do banheiro dos empregados. Lavou o rosto, os braços e as mãos, e não se importou com a poeira que se impregnara nos tecidos das calças e da camisa. Acostumara-se a isso. Olhou-se no espelho e passou as mãos umedecidas sobre os cabelos. Demorou bastante e saiu dali, enquanto ouvia o ruído de uma das portas desenrolando. A loja estava sendo fechada naquele momento.
Seu cérebro entrou em fusão. Pensou no cheque sem fundos, na correria de toda aquela semana, no dinheiro que receberia ali depois de uma noite maldormida e de tormento para os vizinhos, em tudo o mais que fizera, para sair daquela cidade com um pequeno maço de dinheiro no bolso, tudo de que precisava para conseguir um final de semana tranquilo, ou que fosse menos angustiante. Agora, não encontrar o dono do serviço que acabara de instalar, era tudo o que faltava para voltar à estaca zero.
Caminhou até a porta que ainda se encontrava aberta, respirou fundo, hesitou. Escutou o silêncio no interior da loja.
“Talvez, o empregado estivesse incumbido de fazer o pagamento caso ele viesse colocar o serviço encomendado e, naquele momento, certamente, estaria ocupado separando o dinheiro.” – pensou.
Ancorou-se nesta ideia, e sorriu. Sorriu um sorriso descontraído daqueles de fazer inveja a qualquer ganhador de um grande prêmio. Esticou e contorceu os braços como se tentasse acomodar os músculos surrados pela vibração da máquina e, ainda, pelo excesso de trabalho, moveu a cabeça em diversas direções, olhou para o jardim. Finalmente, ele podia observar as crianças arrastando os seus brinquedos, enquanto outras, ao serem conduzidas pelas mãos maternas, retornavam a casa, coisa que ele não pudera fazer enquanto trabalhava. Mas ele tinha de terminar aquele serviço, e não poderia se permitir ao luxo de atrasar a entrega daquilo que prometera.
Sábado de manhã, sem falta!... – lembrou-se.
Lembrou-se do que havia prometido, e cumprira. Não. De modo algum ele deveria pensar em alguma coisa diferente que pudesse interromper o pensamento positivo. Nem mesmo tentar bisbilhotar aquilo que o empregado fazia. Era só uma questão de confiança, e ele tinha de manter a calma. Seria insensatez quebrar aqueles minutos de completo silêncio por causa de mera curiosidade. Pode-se contar dinheiro sem fazer o menor ruído, mas, durante tanto tempo? Tudo bem, talvez contasse a féria do dia, acertasse o caixa, e aí sim, separaria o valor que deveria pagar...
Quê! Meu Deus! – agitou-se.
Um estranho ruído quebrara o silêncio do interior da loja, no momento em que Jonathan se despertava da quimera em que se imergira. O soar do fluxo das águas revolvendo no vaso sanitário fê-lo voltar-se para o interior da loja a tempo de observar, incrédulo, a saída do empregado através da porta do banheiro onde há poucos minutos ele se lavara. Imbuiu-se de forças e foi ao encontro do rapaz que, vindo na direção da porta, trazia um molho de chaves na mão e se preparava para sair.
– O senhor já terminou, podemos ir agora? – inquiriu.
– Sim... quero dizer, o serviço está pronto, só me resta receber... O Mário não virá hoje? – redarguiu Jonathan.
– Não, senhor, ele teve de viajar ontem e só retornará na outra semana!... Pediu que o avisasse quando eu saísse...
– Quando você saísse?!... – irritou-se. – Por que não antes de eu começar a montagem? – explodiu. – Você quer dizer que ele voltará somente na segunda-feira?!
– Ou terça... Bom final de semana!
Jonathan sentiu-se jogado para a calçada, enquanto acompanhava o rapaz que já colocava o gancho para abaixar a porta. Nada mais tinha a dizer. Na verdade, nenhuma culpa tinha o funcionário e, quem sabe, nem mesmo o proprietário da loja, que talvez se afastasse por algum motivo muito justo. Abriu a porta do carro e assentou-se junto ao volante. Tentou manter-se calmo. Ele já havia colocado em prática quase tudo que aprendera para não perder o equilíbrio emocional, por mais crítica que fosse a situação. Mesmo assim, ainda não conseguia conter a indignação que lhe brotava da alma, e no silêncio de palavras, começou a descarregar tudo o que fluía, como um ventríloquo que se esconde detrás do movimento labial para esconder a própria identidade. Olhou para a porta da loja, já fechada, e pediu perdão a Deus pelas blasfêmias que, senão outros, a sua própria audição acabara de captar. Ejetou a fita do cassete e virou-a de lado, introduzindo-a logo em seguida. Ligou novamente o rádio, controlou o volume, olhou no marcador de combustível, girou a chave de ignição, e ouviu o ronco do motor. Desejava ardentemente pensar em qualquer coisa que pudesse obstruir aquela indignação que se misturava ao cansaço das últimas vinte e quatro horas, quase ininterruptas, de trabalho. Contornou vagarosamente a praça principal da cidade, percorreu algumas ruelas estreitas até a avenida principal, e sentiu-se só, enquanto observava as casas comerciais fechadas e as ruas quase desertas não fosse pela circulação de alguns ciclistas que retornavam a casa.
O roncar do motor, agora na estrada, abafava o som do rádio. Aumentou o volume mas não teve vontade de cantar com o grupo, como o fizera anteriormente. Na verdade, ele tinha o semblante triste, obtuso, em cujo olhar podia-se ver espelhado o espírito de uma derrota tão-somente dele. Quis cantar, mas desafinou-se do grupo. Calou-se. Não tinha a vontade de cantar. Entre curvas e retas da estrada, alcançou os dez primeiros quilômetros e deparou-se com a estrada mais visível a longa distância e acelerou entre os canaviais plantados na beira do caminho. Olhou no retrovisor e depois para a estrada. Nenhum outro veículo podia-se ver. Sentir-se-ia completamente só não fosse pelo vislumbre, ao longe, de um vulto que corria na pista de pavimentação asfáltica, vindo na sua direção. Diminuiu a velocidade, reduzindo as marchas drasticamente enquanto enfreava o carro. Olhou rapidamente no retrovisor, percebeu a aproximação de um caminhão, e voltou a concentrar-se na estrada. A silhueta nua de uma mulher mostrou-se nitidamente numa corrida desenfreada. Não viu um acostamento na estrada e acelerou o carro para não causar algum tipo de acidente. Olhou novamente no retrovisor, enquadrou o veículo e a mulher, que ainda corria, percorreu algumas centenas de metros e finalmente conseguiu parar no acostamento. O caminhão diminuiu a velocidade ao vê-lo estacionado e parou, ainda na pista.
– Viu a mulher pelada? – indagou o carona, rindo.
Jonathan não respondeu. Sentiu-se ofendido pelo total desmazelo daquele rapaz e esperou o caminhão ir embora. Acelerou o carro e tomou a pista de retorno, voltando ao encalço da mulher nua. Ele conhecia os evangelhos.
“Estava nu, e me vestistes!”– lembrou-se das palavras de Jesus Cristo, transcritas no evangelho.
Estava na hora de colocar em prática a determinação do Divino Mestre. Aproximou-se da mulher e estacionou o veículo, não se importando de deixá-lo junto do canavial. Saiu imediatamente do carro e ordenou que a mulher parasse. Quase não percebeu um segundo automóvel estacionar-se em seguida. Não menos assustado, o motorista deixou o veículo.
– O que aconteceu, meu chapa! – indagou o homem.
– Ainda não sei... Uê, Manoel, é você? Caramba!... Eu voltava para casa e, de repente, essa mulher surgiu correndo pela estrada... Vamos tentar cobri-la, de alguma forma! Ei, dona! – gritou Jonathan, vendo que a mulher se afastava. – Venha cá, esconda-se no canavial!...
– O que aconteceu, minha senhora? – perguntou Manoel, aproximando-se dela.
Assustada, a mulher caminhou para o canavial.
– Tentemos conseguir alguma roupa, Manoel...
– Primeiro vamos ver o que aconteceu! – insistiu ele.
– Preocupar com o que tenha acontecido?!... Sei lá, o que aconteceu! Vou achar uma casa por aí e pedir algum vestido... sei lá. Tome conta dessa desnuda!
Jonathan conhecia bem a localidade e lembrou-se de uma casa de colonos nas imediações. Havia uma pequena viela em meio ao canavial e caminhou a passos distantes rumo ao casebre. Bateu palmas e esperou algum tempo. Uma senhora mostrou-se na porta.
– Boa tarde, minha senhora. – disse. – Um amigo e eu encontramos uma filha de Deus totalmente nua ali no asfalto e vamos precisar de alguma roupa para vesti-la...
– Não tenho nada, não sinhô... – resmungou ela.
– Algum lençol, sei lá, algum vestido velho...
– Tem não. – insistiu ela.
– Tem sim, dona... Garanto que a senhora tem... Nós vamos pagar por ele!
– Quanto vão pagar?
– Não sei, nunca comprei vestido!... Quanto quer?
– Cinco mil...
Jonathan calou por um momento. Lembrou-se de que tinha apenas mil e quinhentos no bolso.
– Pago três mil e quinhentos. Tenho mil e quinhentos aqui e vou pegar dois mil com o meu companheiro, está bom assim. A senhora ajuda um pouco, o meu amigo um pouco, e eu também faço a minha parte.
– Cinco mil e pronto!
– Três mil e quinhentos e pronto. A senhora já viu o que está na bíblia... É um pecado não vestir quem está nu. É inferno na certa! Ainda mais que é mulher pelada!... Pecado maior ainda!!!...
Talvez, pelo medo do inferno, a mulher concordou.
– Tá bom... Tá bom... eu vou buscar uma roupa.
Jonathan aguardou durante alguns minutos, até que a mulher retornasse com uma camisola nas mãos.
– Buscou o dinheiro? – perguntou ela, entregando o pedido.
– Ainda não, mas a senhora vai lá comigo para ajudar a vestir a pobre coitada da nua!
– Vou não!...
– Vai sim! – asseverou Jonathan, iniciando a pequena caminhada.
Teve ímpeto de se voltar para constatar que a mulher já o acompanhava, mas relutou-se, e seguiu a passos firmes. Aguçou os ouvidos e percebeu o tropel na sua retaguarda. Melhor assim. O seu pequeno repertório de persuasão quase se esgotara e, graças a Deus, a mulher tinha medo do inferno, senão ele teria fracassado no intuito de ajudar o próximo.
Aproximaram-se do Manoel, que vigiava a mulher no meio do canavial.
– Descobriu alguma coisa, Manoel?... Algo que tenha acontecido com a nua? – indagou Jonathan.
– Muito pouco... Ela falou que um cara de bicicleta tentou agarrá-la à força.
– A dona, ali, vendeu uma roupa... Pediu cinco mil, mas eu ofereci três mil e quinhentos. Eu entro com o que eu tenho aqui e você paga o resto. Você é gerente de banco e ganha mais do que eu... Dá logo os dois mil que faltam antes que essa dona resolva não vender o treco.
Eles pagaram à mulher, que se adentrou no canavial para ajudar a nua a se vestir. Pouco depois, elas estavam de volta e, sem nada dizer, a dona da casa retornou aos seus afazeres. Entretanto, a recém-vestida titubeou, demonstrando o medo de sair dali. Talvez ela fosse uma pobre da região ou alguma psicopata que vagava sem rumo. Por algum motivo, Jonathan reconheceu a mulher. Sem dúvida era ela quem atravessara a pista pela manhã, quando ele se dirigia à cidade onde entregaria o serviço. Não relevou o reconhecimento, e caminhou rumo ao carro.
– Vamos, Manoel, a nossa missão foi cumprida!
Na margem da rodovia, eles conversaram a respeito do fato hilariante em que se envolveram e decidiram tocar a vida. Olharam nos dois sentidos da pista, antes de atravessá-la, contudo, Manoel estacou-se, após dar os primeiros passos.
– Vai ver que foi aquele safado que tentou agarrar essa pobre coitada. – gritou Manoel, atravessando a pista em direção ao ciclista. – Pode parar aí! – exclamou, abrindo os braços na frente do indivíduo.
Assustado, sem a mínima noção do motivo da nossa presença ali, o homem segurou as varetas do freio da bicicleta até parar desequilibrado e quase caindo.
– Foi você quem tirou a roupa dessa pobre mulher? – indagou Manoel, apontando para a mulher, que tremia pelo medo de ser novamente atacada.
O ciclista demonstrava um alto grau de embriaguez.
– E daí? O que é que você tem com isso? – rosnou, mal conseguindo pronunciar as palavras. – Tirei mesmo, uai! Eu sou homem e ela é mulher!
– E daí que eu vou quebrar a sua cara, seu filho da p.! Quero ver se você é homem para encarar um homem, seu vagabundo! Cachaceiro de uma figa!
Manoel se descontrolara. Era forte e demonstrava ira. Entretanto, Jonathan, não menos indignado, mas percebendo o que poderia advir daquela agressão, correu e postou-se entre os dois homens. Estavam totalmente fora de controle.
– Calma, Manoel, vamos deixar como está!
– Eu quebro a cara deste vagabundo e sem-vergonha!
– Esquece, Manoel!... – amenizou Jonathan, tentando dissuadir o amigo. – Já fizemos o necessário!... Você vai machucar o cara, arrumar uma confusão danada e, ainda, vão dizer que você bateu no rapaz porque ele estava bêbado. E, o pior de tudo, é que eu preciso de você no banco na segunda-feira. Você se esqueceu de que eu ainda estou com aquela merda de cheque para cobrir, e que não pode ser devolvido?
O bêbado grunhiu alguma coisa e Jonathan irritou-se.
– Agora é comigo! – bradou Jonathan. – Você vai sumir daqui imediatamente antes que eu mude de ideia. Tem outra coisa: tente mexer com essa mulher outra vez e nós vamos colocá-lo na cadeia! Agora, desapareça daqui, porque eu vou esperar você sumir na curva! Nem olhe para trás!
O homem montou na bicicleta e pedalou cambaleante até desaparecer na curva da estrada.
– Você ficou maluco, Manoel? Bater num cara desse?
– A minha vontade é de quebrar a cara desse safado!...
– Vamos embora, amigo... – disse Jonathan. – Estou cansado e com fome... Trabalhei a noite inteira para entregar um serviço e o cara não estava na loja para me pagar. Tenho de voltar lá, na segunda-feira, para pegar o dinheiro e colocar na conta...
Ainda nervoso, Manoel nada mais comentou. Entrou no carro e continuou a viagem, enquanto Jonathan, ocupando o seu veículo, retomou o caminho de volta para casa.
O relógio do banco marcava dez horas e doze minutos naquela manhã de segunda-feira, quando Jonathan entrou na agência bancária repleta de clientes. Ele acabava de chegar da pequena viagem e trazia, no bolso, o dinheiro do pagamento pelo serviço que entregara no sábado, e, na alma apaziguada, a certeza de poder cumprir o compromisso com o depósito. A fila única de pessoas que se dirigiam aos caixas era imensa, e ele não se importou. Volteou o olhar pelo banco até fixá-lo na mesa do gerente. Manoel lia atentamente algum documento entre as mãos. Também, ali, havia uma fila de espera, cinco ou seis pessoas que aguardavam em pé, e Jonathan não quis admoestá-lo com mais uma presença em torno dele. Contudo, não se conteve, ao se lembrar do episódio da estrada, e gritou:
– Ei, Manoel! De segunda a sexta-feira a gente corre para cobrir os cheques... e no sábado a gente corre para cobrir a mulher pelada no asfalto, não é isso?! – gargalhou.
Manoel ergueu os olhos e riu abertamente.
– Eu queria mesmo era quebrar a cara daquele safado sem-vergonha!!!
Nenhum dos presentes conseguiu entender do que eles falaram, até que Manoel começou a explicar ao cliente que se encontrava na cadeira à sua frente. * * * * * *
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