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Existe uma distância micrométrica que delimita as nossas mais diversas emoções, a qual nos leva às mais inusitadas reações físicas ou psíquicas.
Dessa forma, um sentimento de intenso regozijo, poderá se transformar num trauma emocional de sérias consequências quando antecede a um momento de extrema agressão a que sofremos.
Alegria e tristeza, paz e guerra, céu e inferno, tudo isto está ligado a um gatilho que, quando disparado, processa uma reação instantânea e extremamente perigosa.
Tal fato ocorre porque muitas vezes nos esquecemos de que as emoções contrárias fazem parte do mesmo campo psicológico, e nem lembramos de que um perfeito equilíbrio se torna necessário para preencher o espaço mínimo que separa tais reações.
Embora seja muito difícil, para nós, definirmos o ponto exato que delimita tais emoções, o simples fato de conhecermos os mistérios da nossa mente já nos ajuda a monitorar algumas possíveis reações, deixando-nos num patamar de harmonia com o mundo que nos cerca e defendidos das ameaças que nos rondam a cada segundo da nossa existência.
Dessa forma, a capacidade que temos de administrar os nossos sentimentos diante dos percalços da nossa vida, traz-nos o conforto da sensatez ante o imprevisível, ao mesmo tempo que nos sentimos envoltos de paz e de serenidade...
Entretanto, levados pela nossa falta de discernimento e pela covardia, passamos a fazer parte de uma sociedade alienada às mais diversas doutrinas e aos mais diversos conceitos de moral e de ética farisaicos, e não percebemos que a nossa ignorância nos leva à omissão, fazendo-nos cúmplices dos sistemas que nos envolvem e nos massacram no momento em que nos deixamos subjugar pela hipocrisia de muitos dirigentes religiosos e políticos.
Tornamo-nos simples indivíduos transeuntes quando nos cobrimos de vulgares preconceitos, e negamos um simples cumprimento àquele com quem nos deparamos ao longo da nossa caminhada.
Subimos o pedestal da hipocrisia e postamo-nos como melhores, únicos sábios, e nos esquecemos de que os fortes são aqueles capazes de elevar, ao pedestal, alguém que ainda não teve forças para subir o primeiro degrau da dignidade humana.
Violentamos a nossa consciência quando nos calamos ante as promiscuidades que nos rondam e que se tornam comuns dentre as sofisticações consumistas atreladas ao nosso dia a dia.
Gritamos contra a desigualdade social, mas negamos estender as nossas mãos àqueles que marginalizamos, como se apenas a eloquência das nossas palavras fossem suficientes na solução dos problemas da humanidade.
Banalizamos o mais sublime sentimento, no momento em que denominamos de amor, ao colocá-lo como tópico principal ante os nossos interesses mesquinhos.
Imergimo-nos no poço da mediocridade na busca de uma suposta felicidade, enquanto nos esquecemos de que o real sentido da vida só se concretiza no momento em que nos dispomos a servir...
Quando não encontramos tempo para absorver o sorriso de uma criança, para escutar o gorjeio de um pássaro, para sentir o perfume de uma pequenina flor, para perceber a passagem do vento norte batendo-nos no rosto é porque já nos acomodamos no interior do barril da autossuficiência, da mediocridade e do desamor.
Aos poucos, sem perceber, vamos excluindo do nosso vocabulário verbetes como afetividade, carinho, paciência, mansidão, honestidade, amor-próprio, altruísmo, respeito, ao mesmo tempo que sublinhamos todos os sinônimos de solidão, falta de controle emocional, estresse, egoísmo, os quais são atalhos para o inferno da depressão psicológica e do suicídio moral.
Preconceituamos as prostitutas, marginalizamos as crianças, prejulgamos os adolescentes menos favorecidos, pessoas carentes as quais, muitas vezes, jamais receberam um mínimo sequer de carinho e de compreensão, e não percebemos que também nós nos prostituímos no momento em que calamos a nossa voz e passamos a fazer parte de uma sociedade totalmente corrompida e medíocre...
O conhecimento da história de Karla levou-me a escrever este livro... talvez, porque muitas vezes eu tenha me identificado com ela na busca do real sentido da vida.
Quiçá, também você se encontre e, juntos, passemos a ver a flor além da flor, a sentir o vento norte esvoaçar os nossos cabelos, a não invejar a beleza das orquídeas e, quem sabe, tornando-nos crianças, possamos outra vez sorrir como elas.
Paulo J. S. Milagres
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Capítulo 1
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Meu nome é Karla... Karla, com “K”, mesmo!... Foi uma questão de opção minha, esconder-me sob esse nome... Também! poderia ser um outro qualquer!... É o que todos chamariam de “nome de guerra” sugerido por uma cafetina gorda, que me acolheu no prostíbulo dela, há muitos anos...
Na verdade, prefiro omitir meu verdadeiro nome para não ferir as minhas crianças... Ainda não tive a coragem de lhes contar que fui uma prostituta...
Também! hoje isso já não faz mais sentido!... Nem sei se elas se importariam com o fato de ter me deitado com tantos homens!... Afinal, já estão adultas, crescidas, já se casaram, e têm filhos...
Eu contei para elas que as adotara quando ainda eram crianças recém-nascidas, mas, menti ao lhes dizer que não conhecera a mãe natural delas, embora ela dividisse, como eu, a féria diária no pagamento do aluguel de um mísero quarto numa das casas da zona...
Bobagem minha preocupar-me com o que pensarão ao ler este meu relato se nos vemos duas ou três vezes a cada ano, desde que concluíram os estudos universitários.
Interessante como o amor traz consigo a serenidade da espera, quando estamos distantes de quem amamos!...
Impressionante como o amor caminha de par com a paz e com a harmonia!...
Ah, ia me esquecendo!... Tenho cinquenta e oito anos, e, hoje sou uma mulher bem-sucedida na vida, apesar das inúmeras dificuldades que me assolaram sucessivamente ao longo dos anos...
Quando se conhece a ralé que ronda e sustenta o baixo meretrício, poder-se-ia dizer que as prostitutas são a escória de uma mesma sociedade que as discriminam.
Não tenho a intenção de trazer a público o reflexo de um espelho que esconde, na sua face oculta, a imagem dos homens que buscam, no prostíbulo, o esgoto humano onde descarregam as suas frustrações, e as suas mediocridades...
Também não quero relatar as reminiscências de um passado negro, que nada guarda de interessante, no intuito de buscar a piedade daqueles que possivelmente tomarão conhecimento da minha história. Quero apenas mostrar uma passagem que, de forma contundente, marcou a minha vida.
Dispenso-me de relatar o motivo que me levara a entrar na prostituição... seria tentar colocar em questão a mesma história, repetidas ao longo dos séculos, da jovem seduzida pelo namorado e, depois, expulsa da casa paterna.
Nada de relevante... Nada notável que pudesse me fazer diferente das outras mulheres.
Os mesmos tons fortes e avermelhados dos batons e dos ruges, as saias curtas, os brincos de bijuterias... Mas eu era novata e tinha uma boa clientela!...
Vez e outra, eu aceitava o convite de um homossexual que morava em uma cidade vizinha, e, ali, passava alguns dias como hóspede num pequeno aposento, a cuja cama ele cedia, gentilmente, para que eu pudesse receber, com muita discrição, alguns dos amigos especiais dele... E um laço de sincera amizade formou-se entre nós.
Eu havia retornado à minha casa, depois de passar mais de quarenta dias na casa desse meu amigo, ainda me convalescendo de uma infecção do útero.
Enfraquecida e sem dinheiro, sobrevivi às provações pela caridade da cafetina que me permitiu permanecer na casa dela, embora eu assumisse o compromisso de pagar, posteriormente, pelo aluguel do quarto.
Eu não queria pensar no que me acontecera. Sentia-me afundar no inferno, enquanto me pesava o remorso do meu ato pusilânime... Na verdade eu estava pagando o alto custo pela atitude irresponsável diante da minha própria natureza ao provocar aquele aborto...
Com pouco mais de dezoito anos de idade eu perdera, além da dignidade, o direito de engravidar novamente.
A zona talvez seja a escola da vida onde pagamos, com a nossa integridade, o preço de um aprendizado vulgar e inescrupuloso... É, na realidade, o lugar onde chamamos de amor a troca do corpo por um mísero dinheiro que mal compra uma pequena refeição, e um quarto onde quase não se dorme...
Na verdade, eu tinha a minha ferramenta de trabalho ferida, e, ainda, a inaptidão para desenvolver o meu serviço enquanto me julgava a pior de todas as criaturas...
De certa forma, acordava-me para uma realidade da qual eu jamais suspeitaria que me acontecesse... E a vida, que para muitos seria fácil, tornou-se num suplício que aos poucos me atirava às garras do desânimo e da depressão psicológica.
“Lugar de puta é na zona!...” – ecoava, ainda, nos meus ouvidos.
Um coro de vozes, indicando o prostíbulo para onde eu deveria ir, misturava-se, ainda, aos meus pensamentos bloqueados pela incompetência de sobrepujar a agonia que me levava ao delírio e ao desespero.
O cubículo na parte externa da casa tornou-se grande para mim... Nenhum homem buscava uma mulher frágil e desequilibrada. Ao mesmo tempo, a cobrança pelo aluguel se fazia constante a cada amanhecer. Pouco depois, a falta de pagamento, obrigou-me a buscar um novo local onde eu pudesse me abrigar e, não longe dali, eu pude conhecer uma garota que me acolheu no sobrado dela, por conta dos meus serviços da casa.
E, durante pouco mais de dois anos, permaneci ali, entretendo-me entre os afazeres domésticos e a venda do sexo a qualquer um que se dispusesse a pagar por alguns momentos de diversão...
Entretanto, a chegada de novas meninas mais bonitas e menos desgastadas, roubara-me de um espaço do qual eu já me considerava dona.
Assim, sem um teto onde me abrigar, fui perdendo o que restara do meu amor próprio dilacerado, ao mesmo tempo que em minha vadiice passei a ocupar o espaço nas ruas estreitas e malconservadas que circunvizinhavam ao baixo meretrício...
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Eu acabara de sair da prisão, depois de quase um mês detida por vadiagem e mendicância, e voltara para a zona. Na realidade, aquele período de reclusão fizera-me sentir bem, uma vez que durante algum tempo eu conseguira um lugar onde eu pudesse dormir e comer, apesar de dividir a cela com outras vadias.
Também! eu não tinha pressa, nem vontade de sair dali! Como um castigo, ainda me acompanhavam a angústia e a melancolia, quando as imagens dos meus fracassos retomavam a minha mente...
Talvez fosse a consequência de ser expulsa da casa de meus pais o motivo que me levara a crer que, para o meu pecado, nenhum perdão me seria concedido... E, quando o inferno a que fui remetida se fez presente, já não mais fazia sentido escolher esse ou aquele lugar dentro do submundo em que vivia!...
O fogo do desamor ardia em minhas entranhas como se me queimasse a alma e, por um momento, eu cheguei a invejar os animais... Diziam-me que eles não pensam e, se não pensam, por certo, eles não têm almas para padecer no inferno!...
Às vezes, eu me via num espelho, e sentia saudades daquela mulher gostosa que todos homens queriam...
Interessante como mudamos de repente!...
Eu estava feia ou era apenas o reflexo da minha alma a se manifestar nos meus olhos?
E os homens com quem eu havia ficado?...
Ah, sim!... Eles apenas trepavam e saíam... Deixavam o pagamento sobre o criado ao lado da cama, depois de se vestirem, e iam se vangloriar no meio dos outros homens, dizendo que haviam ficado com a melhor puta da zona!...
Agora, tinham medo de que ela se lhes aproximasse, e pedisse uma esmola para o prato de comida!...
Também, o meu amigo homossexual que cuidara de mim ficara distante... Havia muito tempo, ele rompera-se comigo!...
“Nenhum homem gosta de mulher triste!...”– dissera ele, desculpando-se, quando eu o tinha procurado...
São as atitudes que diferem os homens dos animais...
Eu já completara vinte anos e ainda não me sentia gente; apenas uma prostituta, uma vadia e desentendida da vida que me oferecia apenas desilusões e sofrimentos...
O frio das noites maldormidas ao relento feriam-me no corpo e na alma, como um aditivo complementar para o desânimo com que me acordava a cada manhã... E não me esqueço das vezes que o leve toque do cabo de vassoura de um gari era o instrumento que me fazia despertar.
“Levante-se moça... Numa hora dessas você vai ser atropelada!...” – dizia ele, mesmo antes de me mover.
“Que diferença faz?!...” – respondia-lhe, sentindo que a minha fraqueza física dificultava-me os movimentos.
E, não raras vezes, ele arrastava-me para cima da calçada como se aquele gesto de misericórdia pudesse lhe trazer um alívio para a sua própria consciência.
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Capítulo 2
O homem estava novamente assentado junto ao muro que delimitava um lote de terreno baldio, que defrontava com a casa onde muitas vezes eu atendera os meus clientes. Era a terceira vez, nos últimos dias, que eu o via ali e, como eu, parecia não ter onde dormir. Observei-o detidamente sem, entretanto, conseguir visualizar o rosto dele, e nenhum alforje ele carregava consigo.
A meu ver, seria um andarilho comum, acostumado a rondar os ambientes de infortúnio em busca de alguma pessoa com quem pudesse partilhar mais uma desventura...
Resolvi me aproximar dele e atravessei a rua.
Eu tinha fome... E ele um pão de sal na mão esquerda apoiada no joelho.
– Oi!... – falei. – Você é novo no pedaço?!...
Ele ergueu os olhos e contemplou-me durante alguns segundos.
Fitei-o demoradamente enquanto aguardava qualquer manifestação, e uma estranha sensação de paz envolveu-me quando nossos olhares se cruzaram.
– Não!... – disse ele, respondendo ao que eu lhe havia perguntado. – Na verdade estou sempre aqui...
– Como assim?!... Posso me assentar?
– Fique à vontade...
Acomodei-me junto dele.
– É a primeira vez que vejo você aqui!... Quero dizer, acho que já o vi antes... umas duas vezes... – comentei, tentando incrementar uma conversa. – Você não vai comer o seu pão?!...
Ele nada respondeu. Apenas, voltou-se para mim, e depois falou:
– Você tem fome!... Quer saciar-se?
– Foi pelo pão que eu me aproximei... Achei que você dormia e queria roubá-lo!... – confessei, rindo. – Que outro motivo eu teria para me aconchegar de um mendigo como eu? – concluí, estendendo-lhe a mão.
Ele retirou o braço apoiado no joelho e, sem se voltar, estendeu-o para mim, entregando o pão.
– Faz três dias que eu não como... Desde que eu saí da cadeia!... – comentei, ainda com a boca cheia, depois de abocanhar um pedaço do pão. – Porque está na rua?
Não obtive resposta. Talvez ele fosse um homem de pouca fala ou não quisesse ser incomodado naquela hora da manhã. De qualquer forma, eu conseguira o pão e estava me saciando sem ter de roubar-lhe a comida.
Terminei de comer o pão e senti-me satisfeita. Havia, naquele alimento, um gosto diferente, profícuo, que me sustentou, deixando-me com o paladar suave como se eu tivesse acabado de tomar uma suculenta refeição.
– A vida não tem me oferecido grandes venturas... sabe? – falei.
– Eu sei...
– Como sabe?!
– Na verdade eu a conheço bem!...
– Deve ser... Tive muitos homens... Nem me lembro de quantos!... – sorri. – Não faz muito tempo, quando entrei na zona, todo mundo queria ficar comigo!
– Entretanto você nunca se voltou para mim, senão agora!
– Viu?!... Eram tantos que talvez você tenha passado despercebido!... Eu achei que seria fácil...
A lembrança do aborto voltara-me à mente e silenciei alguns minutos.
– Quando eu ouvia as mulheres falando a respeito de tirar... – continuei. – Você sabe como é, homem algum quer ficar com mulher prenhe... e, eu nem sabia quem era o pai!
Sentia necessidade de falar e ele ouvia em silêncio.
– Eu quase morri na casa de um cara... É um bicha que arrumava mulheres para os homens da amizade dele. Logo, depois de a velha fazer o serviço, veio uma regra que não parava. Então, coloquei papel higiênico para estancar o sangue, e fui para lá. Dois dias se passaram até que fiquei com febre e ele levou-me para o hospital. Quando voltei para o quarto dele, contou-me que os médicos disseram que eu não podia engravidar mais e que eu tinha feito um aborto malsucedido. Só então percebi o tamanho do meu pecado... Também! de arrependidos o inferno está cheio!...
Fiz uma pequena pausa, revivendo, em detalhes, todos os momentos que me haviam marcado desde que eu saíra da casa dos meus pais. Em nenhum momento eu quisera reviver o drama que me acompanhava. Pensei que estava sozinha e voltei-me para o lado daquele homem. Ele ainda estava ali, assentado, mantendo-se na mesma posição que o encontrara.
E, durante muito tempo, eu continuei ali, despejando, nos ouvidos dele, tudo aquilo que me fluía da alma, e que em nenhum momento eu ousara confidenciar a alguém.
Finalmente, após o meu silêncio, ele voltou-se para mim e tocou-me no ombro.
– Cada amanhecer é um novo dia! – disse ele, fitando-me nos olhos.
– Para mim, nada mais é que um período de martírio que deverá ser cumprido!... É como se reativassem o fogo de um maldito inferno onde vivo!... – redargui.
– Pode ser...
– É claro que é!
– Mas pode ser mudado!... Nós somos responsáveis pelo céu ou pelo inferno em que vivemos... Nosso Pai nos dá, a cada dia, a oportunidade para mudarmos o rumo das nossas vidas... É necessário que nasçamos de novo a cada manhã!...
– É mesmo muito fácil, para quem está de fora, opinar soluções sobre os problemas dos outros!...
– Silenciosamente, escutei tudo que você me contou desde que se aproximou de mim. Permiti que expusesse tudo que a afligia, sem interromper a sua fala em momento algum... Como você poderia me entender, se atropela as minhas palavras? Como ousa dizer que é fácil os outros opinarem sobre os nossos problemas?!... Foi você quem se aproximou de mim...
– Eu tinha fome... e vi o pão na sua mão!
– Dei-lhe o pão... Saciou-se da fome de comida... Por que permaneceu ao meu lado, contando aquilo que todos já sabem?
– Ainda tenho no paladar o gosto do pão que me deu, não sei, senti-me satisfeita e com forças para falar de mim...
– Pode ir agora, nada a reterá aqui!...
Ergui-me, imediatamente, e atravessei a rua, indo me assentar, como antes, junto da porta da zona. Pendi a cabeça e, colocando o rosto entre as mãos, apoiei a cabeça sobre os joelhos, na tentativa de esconder a vergonha que há muito não sentia.
Um sentimento de remorso pela minha atitude fez-me levantar a cabeça, ao mesmo tempo que o arrependimento me dava forças para olhar novamente para o outro lado da rua, procurando visualizar o homem que saciara a minha fome. Ele ainda estava no mesmo lugar, e resolvi voltar.
– Desculpe-me!... – falei, pondo-me, de novo, ao lado dele. – Fui grosseira com você!
Ele nada respondeu.
– Pensando bem sou um caso perdido... Fui expulsa de casa para não envergonhar meus parentes, e caí na vida... E tudo que consegui foi decepção e sofrimento! Como uma prostituta fracassada pode aspirar alguma mudança se ela só é reconhecida enquanto está bonita e gostosa?! Eu sonhei que algum homem chegasse a gostar de mim e me tirasse da vida... Eu pensei que aquele homossexual que me levava para servir aos amigos dele pudesse arranjar alguém que me entendesse e me ajudasse... Tudo bem que ele me internou no hospital quando quase morri... Quando fiquei deprimida, logo depois da cirurgia, e voltei a procurá-lo, ele nem me recebeu!... Ele é mesmo um bicha!!!...
– E você uma prostituta!... – disse o homem.
Calei-me. As palavras que o homem dissera furtavam-me ao direito a quaisquer condenações a que me propusesse fazer. E, durante muito tempo, ficamos silenciosos.
Ele voltou-se para mim, mas não ousei fitá-lo...
– Siga na rua até a transversal à direita, – disse ele.– e caminhe até se deparar com uma casa azul... Bata à porta e, quando ela se abrir, diga apenas que foi ali para vassourar o seu terreiro... Não se cobre pelo serviço!...
– O quê?!... – redargui. – Você acaba de me dar um pão, e quer que eu trabalhe de graça?!... Isso é porque você não sabe que a última refeição decente que eu comi foi na cadeia, não sei há quantos dias!!!...
– Eu disse: “Não se cobre pelo serviço!”
Ainda sem nada entender continuei em silêncio. Olhei nos meus pés uma sandália remendada.
– Sabe onde tenho conseguido as coisas?!... No lixo!!!
Ergui os olhos para olhá-lo. Ele fitava-me e nossos olhares se cruzaram. Tive medo de encará-lo e abaixei a cabeça.
– Eu a amo! – murmurou.
Assustei-me com o que ouvira. Jamais alguém me dissera tais palavras de forma tão abrangente. Voltei-me novamente para ele, que me sorriu.
– Eu não acredito!... Você está me cantando?!... Quem amaria uma puta?
– Acolher ou não o meu amor, é decisão sua!... Mas tenha certeza de uma coisa: mesmo que rejeite o meu amor, mesmo que não entenda as minhas palavras, ainda assim eu permanecerei sempre ao seu lado, recebendo as pedradas que possivelmente continuarão atirando contra nós!...
O homem levantou-se. Não tinha alforje, nem bolsa. Trouxera apenas o pão, que eu tinha comido.
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