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Quando iniciamos uma caminhada, por menor que ela seja, sempre buscamos nos precaver contra os possíveis perigos a que estamos sujeitos, sem, entretanto, permitir que a apreensão nos ronde e se mostre como o primeiro obstáculo a impedir a nossa jornada.
Então, a determinação torna-se a nossa principal aliada, e age como elemento de combustão que nos impele a dar o primeiro passo em direção ao desconhecido ou ao próximo desafio.
Ao contrário, o medo nos priva de novas descobertas, deixando-nos imersos na mediocridade e invejosos dos que se dispõem a vencer os percalços do dia a dia.
E, entre a certeza da vitória e o risco da derrota, cabe a cada um de nós optar entre buscar ou não a parte de uma riqueza que só aos valentes é dado conhecer...
A sabedoria infinita de Deus dá-nos, indistintamente, a mesma semente de inteligência e, do mesmo modo, o livre arbítrio para decidirmos entre usá-la ou não.
Dessa forma, faz-se necessário que busquemos um entendimento sadio dos valores que nos cercam, e que nos permita reestruturar, dentro da moral e da ética, uma nova cultura aberta ao conhecimento e à verdade.
O conservadorismo fanático de alguns pregadores que se fazem cegos diante de uma sociedade evolutiva nos leva a questionar sobre os mesmos conceitos de religião e religiosidade com os quais Jesus Cristo se deparou há mais de dois mil anos, quando as prescrições doutrinárias eram impossíveis de serem cumpridas...
Daí a razão de me apaixonar por Jesus Cristo, que muito antes já se apaixonara por mim.
De forma clara e corajosa, Ele jamais deixou de gritar contra as aberrações a que eram submetidos os mais fracos e os mais humildes, ao mesmo tempo que oferecia a todos a vida em abundância... uma verdadeira libertação!...
Apegando-me, pois, à proposição dessa filosofia, fui crescendo no conhecimento e na certeza de que, aliando-me ao Divino Mestre, também eu poderia partilhar das venturas do Seu reino de paz e harmonia.
Seguir a filosofia cristã, na sua amplitude, significa romper barreiras e quebrar liames que nos atam às crenças arcaicas cujo resultado a nenhum outro lugar nos levam senão ao limitar da nossa consciência, impedindo-nos de crescer no conhecimento da verdade de que Jesus falou.
Certamente, existe uma grande diferença entre os seguidores de Cristo e os devotos de igrejas...
E, mais uma vez, prevalece o livre arbítrio.
De quando em vez, a inteligência infinita nos chama a um momento de reflexão... e não devemos fugir-lhe!...
Então, o inesperado, porém previsível, acontece-nos e nos coloca num trono onde a sabedoria se posta ao nosso lado, dando-nos a condição de colher as respostas de que tanto precisamos para enfrentar as adversidades a que fomos submetidos. E a presença de Deus torna-se real e quase palpável em meio a tantas evidências.
Logo após sofrer um acidente de trabalho, vi-me à mercê de uma longa analepsia, cuja espera me permitiu crescer em conhecimento e, ainda, colocar em teste a minha confiança absoluta em Deus Pai e no poder de restauração dele.
Assim, a cada lembrança dos olhares estarrecidos das pessoas que puderam assistir à minha queda e logo após me verem caminhando, mais e mais eu pude constatar que eu fora, de fato, amparado pelos braços do meu amigo Jesus, que se faz presente em cada segundo da minha vida.
A experiência de carregar quatro parafusos cravados no crânio e o peso de um cinturão de acrílico, parte de um aparelho cuja finalidade era imobilizar a coluna cervical, jamais poderiam sobrepor-se ao meu regozijo por me sentir incólume apesar das sequelas que me acompanharam nos cem dias aprisionado ao halo-vest.
Ao transcrever esse relato, que agora passo às suas mãos, pensei muito em você que por certo se unirá a mim para exaltarmos juntos ao amor maior, que nos vivifica a cada momento das nossas vidas.
Este livro é, na realidade, o elo que nos torna, mais e mais, amigos!
Paulo J. S. Milagres
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Capítulo 1
Nada diferenciava aquela manhã de sexta-feira, dia 17 de janeiro de 2003. O mesmo sol de verão, erguendo-se ao leste, já ejetava seus raios no chão tosco da oficina no andar térreo da minha casa, mesmo lugar em que, durante a noite, abrigam-se os carros da minha família.
Ali, meu ajudante e eu, executamos a maior parte dos projetos de fachada para lojas comerciais, o que consiste na confecção de letras, desenhos, enfim, tudo que concerne à comunicação visual das empresas que contratam os meus serviços.
A nossa proposta, naquela manhã, era completar mais um trabalho, já na sua fase final, com a aplicação de duas logomarcas. Assim, após a nossa breve oração da manhã, levamos para o local algumas peças de andaime metálico, que serviriam de base para a plataforma de trabalho. Duas torres foram erguidas à altura de cinco metros, ao nível da parte superior de um pequeno telhado de aço preso a uma estrutura de ferro, que protegia a parte frontal do escritório. Algumas peças de madeira foram afixadas na parte alta das estruturas e apoiadas sobre as telhas junto à parede. Ali, foram distribuídas algumas tábuas, completando o patamar para a execução do trabalho.
Para maior segurança, seria necessário prender todo o bloco à parede através de cordas ou cabos de aço, evitando, assim, que todo o patamar se deslizasse ao excesso de peso.
Como de praxe, eu era o primeiro a subir e verificar a segurança do local de trabalho, e, enquanto me dirigia à torre, orei a Deus pedindo que nos ajudasse naquela lida, e, ainda, nos livrasse de quaisquer riscos. Benzendo-me, fiz o Sinal-da-Cruz, e escalei as peças sobrepostas e encaixadas, até o topo da plataforma, que, aparentemente, demonstrava estar segura.
E, tendo achado tudo conforme, pedi ao meu ajudante as peças para alinhamento e apoio do material a ser afixado, assim como a primeira parte da logomarca, equivalente a um triângulo, que, após colocado, seria utilizado como base para os demais componentes.
O rapaz prendeu uma corda ao triângulo, e puxei-a até o patamar. Logo em seguida ele subiu, enquanto eu apoiava a peça na barra, e movimentou-se para o local onde eu me encontrava. Ainda agachado, eu procurava ajustar os pontos de fixação à fachada, quando percebi que o caibro, logo sob meus joelhos se deslizava, e só então me lembrei de que não havíamos prendido a torre à estrutura do telhado.
– Vamos cair! – gritei. – Salte!...
Completamente, desprotegido, senti-me arrastado pelo assoalho e, em vão, tentei prender meu pé esquerdo em algo que evitasse a minha queda em meio àquele amontoado de ferros e madeiras.
No chão de asfalto, em meio aos destroços, procurei visualizar o meu ajudante, que já se encontrava em pé, ao mesmo tempo que alguns funcionários do escritório corriam assustados com o grande barulho provocado pelo acidente.
Ainda caído, procurei movimentar os braços e as pernas, e, ao verificar que eu os conseguia mover, elevei os olhos ao infinito e, num gesto de louvor, agradeci a Deus, em alta voz:
– Obrigado, meu Deus, porque o Senhor nos poupou!
Imediatamente, o proprietário da loja se aproximou, e, muito assustado, perguntou sobre o ocorrido. Acalmei-o, no entanto, dizendo que estava tudo bem.
– Pode levantar-se? – indagou ele.
– Sim... – respondi, ainda em estado letárgico.
Entretanto, ao tentar me levantar, senti uma leve dor muscular na nuca.
– Dói-me no pescoço... – murmurei.
– Vamos para o hospital! – ouvi.
Cuidadosamente, duas pessoas me ajudaram a erguer, e, ainda desequilibrado, caminhei em direção a um veículo que, estacionado nas imediações, já estava disponível para nos levar imediatamente ao pronto socorro.
O Hospital Santa Isabel distava algumas centenas de metros do local do acidente. Assim, poucos minutos depois já nos encontrávamos diante da portaria de entrada para atendimento imediato, e logo um enfermeiro se apresentou, conduzindo uma cadeira de rodas, que colocou à minha disposição. Já no interior do hospital, e depois de assinar o documento do SUS, fui levado até a sala de raios X.
Preocupado com o estado físico do meu ajudante, pedi ao médico que o submetesse aos mesmos exames, contudo eles foram dispensados, pois o rapaz nada sofrera, exceto o grande susto.
Novamente, na sala de espera, local de acesso para os consultórios médicos de emergência, e tendo as radiografias em mãos, eu aguardava ser atendido, ainda assentado na cadeira de rodas. Nos meus pensamentos dispersos, à mercê dos olhares curiosos de outros pacientes que ali esperavam o atendimento, eu procurava não me ocupar com o acidente, embora persistisse uma leve dor na cabeça, e na região muscular do pescoço. Em outras ocasiões eu sofrera quedas de escadas que se deslizavam ou quebravam seus degraus de madeira, porém, era a primeira vez que me levavam a um pronto-socorro, numa emergência.
Vez e outra, funcionários do hospital que circulavam na área, indagavam surpresos a respeito da minha presença ali, e eu os respondia, buscando não perder a descontração:
– Um andaime caiu... Esqueci-me das azinhas e caí com ele, mas Deus me segurou nos seus braços!...
E, sorria sempre, a qualquer indagação.
No silêncio do meu íntimo eu continuava a agradecer a Jesus Cristo pela sua misericórdia, pelo seu amor infinito, e, na minha intimidade com Ele, ainda suplicava:
“Misericórdia, Senhor!”
Impressionante como a nossa intimidade com Cristo nos traz calma e paz. E a certeza de que nunca estamos sós carrega consigo o sentimento de que somos sustentados por uma força suprema, que não nos permite qualquer temor, maior que seja o transtorno que nos ronda. Então, o sorriso se faz mostrar em qualquer situação, por mais caótica que ela nos possa parecer... e tudo se torna efêmero diante de tamanha riqueza...
Luiz Eugênio é médico neurologista. Com seu espírito alegre e quase sempre irreverente, sua dedicação à profissão fê-lo tornar-se o mais respeitável neurocirurgião da nossa região. Moradores na mesma rua, não raras vezes nos encontrávamos para o bate-papo, e uma relação de estreita amizade se formou entre nós.
Eu ainda aguardava ser atendido pelo médico, quando o Luiz Eugênio entrou no saguão, e, caminhando na minha direção, indagou:
– Uê, Paulo, o que aconteceu?!
– Queda de andaime... – respondi.
– Dê-me isso aqui! – completou, enquanto tomava as radiografias dentre as minhas mãos.
Ele adentrou-se no longo corredor e, retornou, depois de alguns minutos.
– Venha comigo! – ordenou o médico.
Um enfermeiro que o acompanhava tomou a cadeira de rodas, onde eu me encontrava, e conduziu-me até a sala de diagnóstico por imagem, no final do corredor. Ali, Luiz Eugênio solicitou a tomografia computadorizada da coluna cervical ao seu colega Ronaldo, que imediatamente pediu à enfermeira assistente que me ajudasse a retirar a camisa.
– Puxa! – exclamou a moça. – O senhor transpira sempre, tanto assim? – completou, deixando a roupa sobre uma cadeira ao lado.
Por um momento deixei mostrar um pequeno sorriso.
– Preste atenção... – falei, dirigindo-me a ela. – Eu estava trabalhando à altura de cinco metros, com o sol refletindo no meu corpo, depois de transportar seiscentos quilos de andaimes e tábuas... Em seguida aquele treco caiu, fazendo-me despencar em meio àquela parafernália... O que você acha que provocou tamanha transpiração? – redargui, rindo solto.
Ela abanou a cabeça negativamente e riu também.
O médico pediu que eu me deitasse na maca, que seria introduzida no túnel.
– Você vai prender a respiração o máximo possível... – recomendou ele. – Evite até mesmo de engolir em seco!
– Dependerá do tempo que você me deixar lá dentro. – falei, demonstrando total descontração.
Fui introduzido na máquina, onde me preocupei em estar completamente imóvel. Eu tinha o palato ressequido, e, por mais que eu me esforçasse em cumprir as exigências do radiologista, senti necessidade de engolir, o que fiz duas vezes. Aliviei-me, porém, ao notar que a mesa se deslizava entre a porta do equipamento.
– Engoli em seco duas vezes! – murmurei, tentando confessar a minha negligência. – Se precisar, volto de novo! – completei, rindo.
– Tudo bem! – exclamou o homem, desconsiderando a minha molecagem.
Com a ajuda da enfermeira, assentei-me na maca, e, como se aguardasse o veredicto de uma sentença, esperei o retorno do Luiz Eugênio, que apareceu minutos depois.
– Paulo!... – disse ele, mostrando o seu sorriso amigo e peculiar. – Eu vou ser curto e grosso: você fraturou a vértebra áxis. Por um milagre você não ficou tetraplégico! Vou colocar um aparelho de fixação e vai ficar com ele de três a seis meses. Você pode agradecer a Deus por ainda estar em pé!...
Ele descarregava a sentença em tom de voz tranquilo e sereno. Entretanto eu o interrompi:
– Tenha certeza, meu jovem, eu já agradeci a Deus! – exclamei, mantendo a minha calma.
Fiz um pequeno silêncio.
– O que você está esperando? – indaguei. – Vamos começar a recuperação já! – insisti.
Luiz Eugênio sorriu, e completou:
– Ligue para a sua casa e avise à Luiza e ao Paulinho que eu quero conversar com eles!...
Meu ajudante, que estava junto a mim, necessitando ir até a oficina, incumbiu-se de transmitir o ocorrido à minha esposa e ao meu filho. Eu não queria assustá-los, e achei melhor não lhes comunicar por telefone.
Outra vez o enfermeiro aproximou-se e ajudou-me a sentar, cuidadosamente, na cadeira.
– Leve esse cara para o 32!... – determinou o Luiz Eugênio. – Mas, antes, raspe a barba e tire essa cabeleira dele! – riu o médico. – Vamos ver esse cara sem a barba!!! – falou, ainda rindo.
– Não, não! – relutei. – Na minha barbinha ninguém mete a mão!... Meu pescoço nada tem com a barba! – sorri.
Um rapaz aproximou-se de nós. Ele trazia dois tipos de colar cervical, entregou-os ao médico, que observou um a um.
– Este serve! – concluiu ele, devolvendo o outro ao rapaz.
E aplicou-o, imobilizando-me o pescoço.
A barba modelada e os cabelos mais longos faziam-me sentir bem e eu os preferia. Não raro algumas pessoas mais íntimas comentavam a respeito do meu desleixo, e sempre me aconselhavam a retirar a barba e a manter os cabelos mais curtos. Porém eu relutava em conservá-los e, naquele momento, via-me à mercê da determinação do amigo.
O quarto número 32, no terceiro e último andar, era provido de quatro leitos, que se destinavam ao atendimento dos doentes atendidos pelo SUS – Sistema Único de Saúde, órgão mantido pelo governo federal. Com a minha chegada, a lotação de pacientes no quarto ficava completa, uma vez que eu ocuparia o segundo leito, que se achava vazio.
O rapaz ajudou-me a deitar. E, pela primeira vez, durante toda a minha vida, eu ocupava um leito hospitalar.
– Qual é o seu nome? – indaguei ao enfermeiro, que me conduzira até ali.
– Lúcio! – respondeu o rapaz gentilmente. – O senhor tem barbeiro particular?
– Sim, contudo não acho necessário incomodá-lo... Não há barbeiro no hospital?
– Está falando com ele!... – gargalhou o moço.
– Pelo amor de Deus! – exclamei. – Já não basta uma confusão?
– Espere um momento... Cuidado para não se mover!
E, afastando-se do quarto, deixou-me na companhia dos outros internos.
– O que aconteceu, moço? – perguntou o homem, que ocupava o último leito.
– O andaime tombou... – respondi. – E, como não tenho asas, Deus segurou-me nos braços!
O homem da primeira cama, ao meu lado esquerdo, disse qualquer coisa, que eu não entendi. Ele demonstrava me conhecer.
– Não posso me virar, mas estou bem. – murmurei.
– Houve a fratura de uma vértebra, nada demais, pela graça de Deus!
– Deus é bom pai!
– Sim... como é!
E silenciei sobre qualquer outro comentário. Cerrei os olhos e procurei refazer-me de tranquilidade. Eu precisava concatenar meus pensamentos, trazendo à mente todas as imagens do que ocorrera naquela manhã.
Talvez nenhum acidente tivesse ocorrido se eu não me esquecesse de amarrar a corda de segurança prendendo o bloco da torre ao telhado. Também, poderia ter acontecido desastre maior se a tivesse colocado... Então, não querendo interferir nos desígnios de Deus Pai, achei melhor não me questionar, nem me culpar do ocorrido. Assim, mais uma vez, agradeci a Jesus Cristo pela integridade física, intacta, do meu ajudante.
Por certo, ele já deveria ter notificado à minha mulher e ao meu filho.
E, nesse estado de semissono, senti a aproximação de Luiza, minha esposa. Ela aproximou-se, aflita, do meu leito, no momento em que eu descerrava meus olhos. Estendi-lhe o braço esquerdo, e tocamos as nossas mãos.
– Eu amo você! – disse ela, demonstrando-se agitada.
– Também a amo... – murmurei. – Fique calma, estou perfeitamente bem! Como vê, Deus segurou-me nos seus braços e estou perfeito!!!... Uma pequena fratura, algumas pequenas escoriações... – comentei sorrindo, e aduzindo-lhe tranquilidade. – O Paulinho já sabe? – indaguei, ainda.
– Sim, ele está na portaria, aguardando o doutor Luiz Eugênio...
– Ótimo... O Luiz dirá tudo a ele!
– Subi rapidamente... queria ver como você está.
– Parece que o Luiz quer falar com você também.
– Vou descer, o Paulinho está preocupado. Fique bem tranquilo... Deus está com você.
– É claro que está!... É você quem deve se acalmar. O enfermeiro virá retirar minha barba e aparar meus cabelos.
Uma senhora aproximou-se do meu leito e conversou com a minha esposa a respeito do que me acontecera. Ainda ali, falou da presença do filho que ocupava a cama à minha esquerda. Depois, voltou-se para ele, e puseram-se a falar.
– Vamos providenciar um apartamento. – disse Luiza, voltando-se para mim. – O Paulinho virá aqui, e, depois de ele descer, iremos até a casa. Voltaremos para verificar toda a documentação de praxe.
– Tudo bem, mas façam com a maior calma. Diga ao nosso filho que estou perfeitamente bem... só terei algum tempo de férias... – falei, sorrindo.
– Fique com Deus! – exclamou Luiza, afastando-se.
– Estou com Ele! – reafirmei.
Durante alguns momentos, permaneci a sós com os meus pensamentos dispersos. Logo depois, Paulinho entrou no quarto.
– Olá, pai, tudo bem? – indagou ele, aproximando-se.
– Tudo bem, filho... graças a Deus!... Vocês estiveram com o Luiz Eugênio?
– Sim, ele explicou-nos tudo... Mas você vai ficar bom logo!
– Sim, se Deus quiser!... E Deus quer, tenha certeza disso!!! – falei, demonstrando total serenidade.
– O doutor Luiz falou num aparelho que você deverá usar... Ele já ligou para os fornecedores e avisou-os de que eu entraria em contato com eles... Ligarei lá da nossa casa.
– O Luiz é muito amigo... ele fará o melhor que se fizer necessário... É um ótimo médico. – afirmei. – Sabe o que aquele cara fez?
– O quê?
– Exigiu que eu retirasse a barba e cortasse os meus cabelos... Ele é mesmo um... – brinquei, descontraído. – Agora você está nas minhas mãos, disse ele, e você tem de fazer o que eu mandar... Foi o que ele falou! – gargalhei.
Paulinho sorriu, também.
– Vocês já almoçaram? – preocupei-me.
– Não, pai, assim que soubemos, viemos rapidamente. Tivemos dificuldades em chegar aqui, por causa do horário de visitas. Nós vamos providenciar a sua remoção para um apartamento, assim teremos mais liberdade...
– Sim, meu filho, entretanto vocês devem almoçar antes de qualquer coisa. Estou bem aqui, fique tranquilo.
– Então vou descer... Fique com Deus! – disse ele, tocando levemente no meu ombro.
Alguns membros da igreja protestante chegaram para visitar e orar pelos doentes, e iniciaram suas orações. Tal como os da renovação carismática católica, que eu conheço relativamente bem, eles traziam consigo, sob o braço, a bíblia sagrada. Consciente da necessidade do louvor a Deus em qualquer situação, eu procurava ouvir os detalhes da pregação, embora não concordar com a didática de ensino deles a respeito da religião. Particularmente, eu creio no Deus amor, fonte de vida e felicidade, contrário ao Deus carrasco a que pregam, e que castiga os negligentes.
Eu adoro Jesus Cristo tanto mais quanto eu conheço a inteligência infinita dele, que lhe permitiu curar, de maneira espetacular, os enfermos que se aproximavam dele, e que, através da fé dos que nele crêem, ainda continua curando e libertando.
Um dos participantes, de quem eu apenas ouvia a voz, tomando o curso da pregação, falava da misericórdia de Deus e da necessidade de conhecermos a bíblia através de uma constante leitura. Porque, no capítulo tal, Deus falou isso, e falou aquilo... e disparou, dizendo que se estamos enfermos é por causa das nossas iniquidades...
Novamente, a letargia me trouxera o sono, e um leve dormitar, embora eu relutasse em não dormir. Mesmo com o acompanhamento médico, eu preferia não imergir em um sono profundo. Entretanto, na comodidade do leito, acabei vencido pelo cansaço e, tendo dormido um pouco, somente acordei com o regresso do Paulinho, que se aproximou do leito.
E, com os olhos ainda semicerrados, pude vislumbrar o seu corpo junto a mim.
– Olá, pai, como está passando? – indagou ele.
– Estou bem, filho. Graças a Deus, tudo bem!...
– A mãe ficou lá em casa, dando alguns expedientes. Eu vim para ficar com você... Ela ligará para aqui, quando estiver resolvido algumas pendências... Vou buscá-la, assim que ela telefonar.
– Ainda estou aguardando o Lúcio...
Ficamos em silêncio.
– Você deve retornar ao trabalho. – preocupei-me.
– Eu avisei ao departamento a respeito do ocorrido, e estou dispensado dos compromissos de hoje para cuidar de tudo que você necessitar aqui... Segunda-feira continuarei o meu trabalho na firma... Não precisa se preocupar.
Lúcio adentrou-se no quarto acompanhado por outro rapaz, que trazia um embrulho na mão. O semblante alegre do moço misturava-se à cor negra da sua pele, enquanto seus lábios deixavam mostrar o sorriso despreocupado.
– Pronto, senhor Paulo... Trouxe um auxiliar! – disse o moço, deixando o embrulho sobre a cama.
– Agora que me ferrei!... – brinquei. – Como se não bastasse um, apareceram dois...
– É claro! Um para a barba e outro para o cabelo! – riu-se.
E puseram-se a trabalhar. Ao mesmo tempo que Lúcio tosava a minha barba, seu companheiro retirava grandes mechas dos meus cabelos. E, durante alguns minutos, eu vi perecer um hábito de mais de trinta anos...
– Poupe, pelo menos, o bigode! – supliquei.
– Está bem... – murmurou Lúcio, sensibilizando-se ao meu apelo.
E, como uma ovelha nas mãos do tosquiador, deixei-me vencer ao acaso do que acontecia, enquanto um estado de letargia me distava da realidade presente. E, ainda, no meu silêncio interior eu orava ao Pai Celestial:
“Dê-me forças, Senhor, nessa jornada que estamos iniciando... Porque sei que o Seu Filho Jesus está comigo, jamais me sentirei sozinho. Devo resignar-me, Senhor, e só o conseguirei com a sua força em mim... Abençoe toda a minha família... e os meus amigos, principalmente, aqueles com quem tenho maior relacionamento... Obrigado, Senhor, pela sua presença viva em minha vida... Muito obrigado, Senhor, pelo momento que vivo agora, amém.”
– Ei, meu irmão! – disse Maria Teresa, adentrando-se no quarto.
A voz da minha irmã soou no recinto. Ela reside em Belo Horizonte, na companhia do seu marido e dois filhos. Sua filha, já casada, mora na mesma região metropolitana. O casal viera passar alguns dias na casa do nosso irmão João, que mora numa cidade próxima vinte quilômetros daqui. Em dias anteriores eles estiveram em minha casa para nos visitar e, naquela data, deveriam retornar à cidade onde moram. Por certo, minha esposa já os teria avisado a respeito do acidente, e, antes de seguirem viagem, vieram ao hospital para me ver, embora o horário liberado para isso já tivesse terminado. De qualquer forma eles estavam ali, o que me trouxe grande satisfação.
– Olá, irmã... você já sabe da façanha! – falei. – Estou bem, graças a Deus!
– A Luiza providenciará os papéis para a sua remoção daqui para o apartamento... Vocês terão mais liberdade ali.
– Sim, será melhor. – murmurei.
– Se vocês quiserem eu poderei ficar para os ajudar!
– Agradeço, irmã, mas não será necessário. Você tem os seus compromissos, ademais estou bem. – agradeci.
– Foi o que a Luiza disse, mas se precisarem de mim, disponho-me, sim? – prontificou-se ela, mais uma vez.
– Que bom que você veio, eu amo você! – falei, em meio à emoção.
– Eu também amo você! – disse ela, sorrindo. – Vou descer, o Marcos virá aqui, também.
– Ficarei feliz em vê-lo.
– Estou levando os livros!
– Sim... espero que venda muitos! – sorri.
Ela aproximou-se do meu rosto e beijamo-nos. Ainda despediu-se do Paulinho, e saiu do quarto.
Junto à porta, alguém chamou por meu filho e pediu-lhe que telefonasse para a minha casa.
Por um momento, perdi-me em pensamentos.
– Vamos tomar o banho? – disse o Lúcio.
Sua voz soou, roubando-me das minhas divagações.
– Sim, – respondi. – antes eu necessito fumar um cigarro! – completei, tentando achar o maço de cigarros no bolso da camisa.
Só então percebi que eu tinha o peito nu.
– A minha camisa... onde está a minha camisa? – indaguei, preocupado.
– Eu a coloquei no armário. – disse o rapaz, dirigindo-se ao pequeno banheiro do quarto. – Contudo não deve fumar aqui! – alertou.
– Pois tenha certeza de que ninguém me impedirá!... – relutei. – Do contrário, fumarei lá fora... – sorri.
Caminhei, lentamente, até o pequeno armário perto da
porta do banheiro. A dor lombar dificultou-me agachar, e, com um pequeno esforço, consegui apanhar o isqueiro e o maço de cigarros. Discretamente, acendi um e fumei-o ali, soltando a fumaça vagarosamente e soprando-a através da fresta da janela.
– Vamos ao banho? – insistiu o rapaz.
– Sim. – prontifiquei-me, atirando o toco do cigarro no vaso do estreito banheiro.
– Melhor despir-se aqui mesmo!
As visitas já haviam deixado o quarto, embora a porta ainda permanecesse semiaberta. Despido da camisa, retirei também as calças e a cueca. Olhei, detido, a coxa esquerda, a virilha e, por um instante, preocupei-me com o que eu via. Além de algumas escoriações, um hematoma muito escuro cobria toda a região da virilha esquerda. O inchaço na bolsa escrotal multiplicou o seu tamanho natural. Cerrei os olhos como se quisesse fugir ao que acabara de ver. Voltei a abri-los. Era apenas o começo de uma realidade, que já se fazia presente, e eu não poderia fraquejar. Minha descontração, naquele momento, era essencial para a minha recuperação. Entreguei o meu estado de estupefação a Deus, pedindo-lhe que nada além do superficial e visível, tivesse sido afetado. E, voltando-me para os demais internos, mostrei-me.
– Olhem aqui, pessoal, garanto que vocês nunca viram isso!... – exclamei, buscando alívio para o meu susto.
O silêncio de todos ecoou como um grito perplexo.
Um movimentar junto à porta do quarto chamou-me à atenção. Voltando-me, notei a presença do meu cunhado Marcos.
– Olha aqui, cunhado, veja você também! – falei.
– Puxa vida! – respondeu Marcos, demonstrando sua preocupação pelo que acabara de ver. – Caramba!... E aí, Paulo?... Além disso, como você está? – completou.
– Estou bem, graças a Deus!
– Foi feio, hein cara?!
– A presença de Deus é mais forte!
– E como!
Marcos sempre se mantinha nos diálogos com frases curtas, mas sinceras. Observei que o seu estado emocional, naquele instante, não lhe permitia alongar o nosso colóquio.
– Vou tomar o banho agora...
– Tudo bem, fique com Deus! – disse Marcos, saindo do quarto.
– Vão com Deus!...Cuidem-se na estrada! – falei.
Fiquei feliz com aquela visita. O enfermeiro ainda me esperava junto da porta. Cuidadosamente, ele me conduziu até o chuveiro, e, mostrando-me os cuidados que eu deveria ter durante o banho, abriu o registro da ducha.
– Não se preocupe com nada! – insistiu ele, pegando do sabonete.
– É a sua função aqui?
– Pode acreditar! – riu.
– Acredito, contudo tenho certeza de que você nunca lavou um cara bonito assim!
– Nunca! – gargalhou.
Terminamos o banho e retornei ao leito, acomodando-me novamente ali.
* * * * *
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