Duas Almas

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Desde crianças somos impregnados de medo. Talvez porque seja a forma mais fácil de conter, já nas primeiras fases de nossa criação, os nossos impulsos, acorrentando-nos às pessoas que nos cercam e que, de forma ingênua, agem levadas pela mesma cultura, em prol de uma suposta segurança.
Assim crescemos amedrontados a atravessar uma avenida, ao cão que se aproxima, ao uso do elevador, à doença que nos leva à morte... e não percebemos que caminhamos a passos distantes em direção a algum tipo de fobia.
E o “antídoto” transforma-se em um veneno “letal”...
Poucos dentre nós estamos isentos de tal risco. Se a nossa cultura nos abarrota de tabus que limitam o nosso ego, também ela é responsável pelo estado de pânico que isso acarreta, quando nos deparamos, já adultos, às contradições daquilo que enfrentamos, ao que nos foi ensinado...
Nenhum de nós será realmente livre se não tivermos uma pequena “ponta de iceberg” na qual possamos nos agarrar.
A minha proposta é estar junto de você que tem em mãos o meu livro, para que possamos caminhar juntos em busca do essencial, porque, afinal, agora somos amigos.

Paulo J. S. Milagres


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Capítulo 1
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Quem poderia afirmar que aquele sentimento de amor modificaria a vida de tantas pessoas? Já não resta qualquer dúvida que era algo puro e sublime na sua essência!...
O crepúsculo envolveu-me mais uma vez, e, com ele, sinto-me possuído de grandes recordações. É bom voltar-mos ao passado... Muitas vezes a angústia e a tristeza nos tornam insuportáveis, e então, buscamos a lembrança de alguma coisa feliz, ou infeliz demais, que de certa forma supera a amargura presente.
Mas quem poderia afirmar que aquela menina de cabelos negros e semilongos pudesse transformar a vida de dezenas de pessoas?
Era Cláudia...
Chamava-se Cláudia aquela pequenina joia que, às vezes, usava óculos devido a um pequeno defeito no olho esquerdo.
Longos anos se passaram desde que eu a conhecera naquela festa de formatura dos alunos da Escola Normal. O baile realizara-se, como sempre, no único clube da cidade, que ficara repleto de parentes e amigos dos formandos, muitos deles visitantes de outras cidades.
O clube, denominado Aero Clube, era um casarão de dois andares, construído na praça principal daquela cidade do interior, e quase todos os eventos realizavam-se ali. A decoração do salão, normalmente ornamentado de flores naturais, trazia ao ambiente um perfume suave e discreto.
Circundando a área central do salão que se destinava à pista de danças, num plano um pouco superior àquele, eram distribuídas as mesas, acompanhadas por quatro cadeiras, normalmente reservadas aos formandos e a seus familiares. As excedentes eram, ainda, oferecidas aos visitantes.
Como de costume, eu estava ali, ocupando a mesa a mim reservada, e saboreava uma mistura de gim com água tônica. Às vezes, eu deixava a mesa e saía a procurar por algum conhecido com quem pudesse conversar, ou mesmo ir ao encontro de alguma jovem para convidá-la a dançar. Tomei da bebida, dois ou três tragos, enquanto a orquestra terminava de tocar um foxtrote. Acendi um cigarro, e, colocando o maço sobre a mesa, resolvi deixar o lugar e caminhar ao longo do salão, um pouco mais vazio.
Passado algum tempo, e sem encontrar alguém que me fizesse companhia, decidi voltar à mesa, uma vez que a orquestra reiniciava a música. Caminhei, por entre os pares que haviam retornado ao salão, em direção à mesa, e pude perceber que ocupando uma das cadeiras, oposta àquela na qual eu me encontrava antes, havia uma jovem até então desconhecida. Sem notar a minha aproximação, ela tocava levemente os dedos no arranjo de flores, centrado sobre a mesa, num gesto de singelo carinho. Não podia me ver, pois estava de costas para o salão. Por um momento parei para observá-la, depois tomei discretamente o meu lugar à mesa.
– Permita-me? – perguntei, com naturalidade.
– Como não... – respondeu ela, em meio a um sorriso. – A mesa é tua!
– Como sabe? – indaguei, surpreso. – A mesa deveria estar desocupada quando sentou-se!
Nada me disse. Fitou-me, como se quisesse me ver além da alma, e permaneceu em silêncio alguns segundos. Depois pegou o cartão de reservas, que ainda se encontrava encostado no arranjo de flores, como se quisesse conhecer o conteúdo, e leu.
– Bonito o teu nome! – murmurou. – Não me entendas mal por ter invadido a tua privacidade, ocupando um lugar em tua mesa... – completou, sem sequer erguer os olhos.
Durante alguns minutos a estranha jovem permaneceu em silêncio, mantendo a cabeça um pouco inclinada, como se observasse algo sobre o seu próprio colo. Retirou a mão até então sobre a mesa, e, levando-a ao colo, pegou uma pequena bolsa e a depositou junto ao arranjo de flores. Ergueu a cabeça, e por um instante fitou-me, enquanto seus lábios molduravam um sorriso.
– Danças comigo? – falou, quebrando o silêncio.
– Não sou um bom dançarino. – respondi. – Se não se importar com algumas pisadelas, podemos arriscar!
– Sei que danças bem... És um bom par!
A orquestra executava um bolero e dançamos durante algum tempo. A moça deslizava no salão com uma leveza indescritível, demonstrando uma afinidade imensa com a dança. Suave e ternamente, ela deixou a sua cabeça apoiar-se em meu peito.
– Dança divinamente! – murmurei.
Ela afastou um pouco a cabeça, e fitou-me.
– Bondade tua... És muito gentil! – disse ela, sorrindo.
Encostou novamente sua cabeça em meu peito. Eu podia sentir o perfume dos seus cabelos.
– Como se chama?
– Cláudia...
– Bonito o seu nome...
Limitou-se a sorrir, e como se quisesse se abandonar em mim deixou-me sentir todo o volume do seu corpo junto ao meu.
O som da orquestra em declive deu lugar à voz rouca do mestre de cerimônias que, numa locução solene e calma, convidava os formados a se apresentarem com seus pais, para a dança da valsa. Olhei no relógio de pulso e verifiquei o horário.
– Vamo-nos sentar... – falei. – Agora somos intrusos!
– Sim. – concordou ela, afastando seu corpo do meu. – Viste como acertei? Danças muito bem!
– Bondade sua! – sorri.
Voltamos à mesa e sentamo-nos. Cláudia sentou-se ao meu lado esquerdo, tomando o cuidado de aproximar bem a sua cadeira da minha, num propósito de estar bem próximo de mim.
– Assim ficarei bem melhor! – murmurou. – Pertinho de ti, e ainda vendo os casais dançarem. – completou ela, sorrindo.
– Bebe alguma coisa? – perguntei. – Um refrigerante? – concluí.
– Prefiro o mesmo que tomas! – sorriu.
– Tudo bem.
Ergui a cabeça à procura do garçom que me servia. Ele aproximou-se, ao meu sinal.
– Mais um gim? – perguntou o garçom, demonstrando intimidade.
– Duas doses... – respondi. – Como de costume!
A pista de danças, agora quase vazia, seria o palco para a dança da esperada valsa da formatura. Cada aluno deveria se apresentar, ao ser convidado, com seus pais ou padrinhos. Depois, uma nova valsa seria tocada, e então os namorados ou colegas poderiam participar, também, do grande momento da festa de formatura.
O mestre de cerimônias iniciou a chamada dos alunos,que se apresentavam cada um acompanhado de seus pais e, pouco a pouco, a pista de danças, repleta, acolhia todos os alunos. O garçom aproximou-se e deixou a bebida sobre a mesa.
– Obrigado! – agradeci.
O rapaz afastou-se, sem nada dizer, perdendo-se entre a ala de mesas. Cláudia pegou solenemente o copo, e em meio a um sorriso delicioso murmurou:
– Ao nosso encontro!... Está bem?
Olhou-me profundo nos olhos como se esperasse uma resposta. Silenciei-me sem ainda nada entender e me perdi na beleza dos olhos negros daquela pequena desconhecida.
– Tudo bem. – murmurei, quase imperceptível.
Ergui o copo e brindamos, ao que pude sentir o brilho de felicidade irradiado nos olhos daquela menina. Bebemos algumas vezes em silêncio enquanto ouvíamos a orquestra.
– Você não é daqui... – falei, tentando quebrar o silêncio do nosso diálogo.
– Sou nova na cidade. Mudamos há pouco tempo... És
a primeira pessoa que conheço aqui! – sorriu.
Aquele sorriso solto, muitas vezes aberto, deixava-me surpreso, perplexo e emudecido. Então, eu me continha somente a observar aquela desconhecida, mesmo porque eu ainda não sabia sobre o que falar, dado ao fato de tamanha espontaneidade de Cláudia.
– É costume seu invadir a mesa de estranhos? – perguntei.
– Não... – respondeu ela, sem se ofender. – Nem és um estranho para mim!...
– Como assim? – perguntei, sem compreender.
– Até sei onde trabalhas... – riu-se. – Ali, em uma sala!
Apontou para uma janela, junto à sacada, indicando uma situação qualquer.
– Acho que é lá, naquela direção! – bebeu, novamente.
– Em que trabalhas?
– Sou contador!
– Que bom!... Imaginei que fosse algo assim... Talvez um advogado.
– Já que me conhece, fale-me de você!
– Amanhã... Não vais me levar para ver a tua cidade?
– Por que eu a levaria? – redargui, sem ainda entender a pretensão da moça.
– Porque te pedirei que venhas comigo... – murmurou. – Tu não ousarias negar!
– Interessante...
– Quê! Como assim?
– A sua maneira de falar... Na região onde morava é comum usar a segunda pessoa?
– Nem todos... Adquiri o hábito de usar a segunda pessoa ainda na universidade...
Pegou o copo, e levando-o à boca bebeu um pouco.
– O que estudou? – indaguei, tentando conhecê-la.
– Fazia medicina... – murmurou.
Por um momento seu semblante mudou, e, durante alguns segundos, calou-se. Abaixou a cabeça e permaneceu assim durante algum tempo. Era como se a moça voltasse à lembrança de alguma coisa que a houvera marcado.
– Por que me falou que fazia medicina? – perguntei, tentando fazê-la emergir de um estado de absorção.
– Sinto muito... – disse ela, enquanto erguia a cabeça.
E deixou esboçar um novo sorriso.
– Outro dia falaremos disso! – completou.
Também não quis forçá-la a comentar algo que, para ela, pudesse ser desagradável.
– Tudo bem, – assenti. – eu levarei você para conhecer esta grande cidade! – gargalhei.
– Não disse que tu me levarias? – sorriu. – Eu sabia!
– Afinal será mesmo um prazer...
O salão novamente ficara vazio. Os pares que ali dançavam a valsa já haviam retornado aos seus lugares. Ouviam-se apenas os rumores das conversas e alguns risos de alegria pela conquista de mais uma vitória no currículo escolar... Daí a pouco viria a saudade dos apertos e sufocos, e logo em seguida alguns deles começariam a enfrentar, noutra cidade, o cursinho preparatório ao vestibular.
Bebi mais uma vez, e notei que havíamos bebido toda a dose. Permanecemos em silêncio durante algum tempo. A realidade é que eu não sabia o que dizer. Mesmo porque uma companhia feminina era o que eu menos esperava naquela noite. Apesar de frequentar inúmeras vezes os bailes da cidade, poucas vezes eu participava de alguma dança. Continha-me a observar os casais e, principalmente, tomar alguma bebida. Procurava, de certa forma, esquecer-me das leis e dos números com os quais eu convivia no meu dia-a-dia no escritório.
– Não queres me falar do teu trabalho? – perguntou Cláudia, quebrando o silêncio.
– Nada de interessante!
– Deve haver algo... Como é?
– Não prefere conhecer o clube? – falei, desviando o assunto. – Tem uma varanda nos fundos, a céu aberto...
– Prometes que me falarás de ti? – insistiu.
– Sim, – concordei. – mas também falará de você!
Levantamo-nos e cruzamos o salão em direção à varanda na retaguarda do casarão.
Era descoberta de telhas, e dali podia-se observar o céu estrelado. Aproximamo-nos da balaustrada e permanecemos em silêncio algum tempo.
– Amo contemplar o infinito à noite... – disse a moça, olhando o zênite e tocando levemente a mão sobre a tábua superior do balaústre. – Muitas vezes eu consigo observar alguma estrela que, de repente, muda-se de lugar...
Aproximou-se mais um pouco e tomou o meu braço, na mais perfeita intimidade.
– Costumas observar Vênus, logo após o sol se pôr? – perguntou.
– Não habitualmente... – respondi, quase sem notar.
Intrigava-me a maneira natural com a qual Cláudia se aproximava. A sua atitude de abandono em mim enquanto dançávamos, a colocação da sua cadeira junto à minha e, naquele momento, a espontaneidade em me segurar pelo braço.
– Virás mesmo, caminhar comigo?
– Sim. – respondi, lacônico.
– Estás calado... Está bom aqui, falas de ti!
– O que quer saber?
– Quero saber tudo de ti! – insistiu.
Cláudia fitou-me nos olhos e deixou esboçar um sorriso tímido, completamente oposto à sua maneira até então apresentada.
– Quero saber tudo de ti! – exclamou, novamente.
– Acho que já me conhece de alguma forma... Até sabe
onde trabalho! – falei, em meio a um sorriso.
– Realmente pude ver-te duas ou mais vezes... Em uma delas descobri que entravas num escritório. Eu não sabia, entretanto, o que fazias naquele lugar.
– Sou contador... Faço a contabilidade de algumas firmas... É um modesto escritório... – revelei.
Na realidade eu não tinha a menor vontade de falar do meu trabalho. Também não sabia sobre o que dizer. Preferia continuar tomando o meu costumeiro gim, e como sempre, depois de sair dali, voltar para casa, um pouco embriagado. O hábito de beber tornara-se, aos poucos, uma constante em minha vida. Voltei a observar o infinito.
– És contador há muito tempo?
– Cinco ou seis anos... Mais ou menos.
– Gostas da profissão?
– Na realidade não, digamos que me acostumei! – ri.
– Mas devias gostar!
– É muito complicado... Aprende-se a fazer algo, que muitas vezes não corresponde à vocação, e, atendendo à necessidade que temos de ganhar para sobreviver, deixamos de lado o que realmente gostaríamos de fazer.
– Mas devias gostar! – repetiu. – Cinco ou seis anos já é um bom tempo!
– Bom tempo... Como? – redargui, sem entender.
– Bom tempo para conhecer... amar...
– E você quer que eu ame os números, as leis... Só mesmo rindo! – completei.
– Sim! – insistiu.
– Tudo bem... – concordei. – Acho melhor voltarmos à mesa...
Apesar do calor naquela noite de verão, uma aragem procedente do norte dava um frescor à varanda, diferente do ar quente do interior do salão, mais ainda aquecido pelo número de pessoas reunidas ali. Entretanto, achei mais cômodo voltar à dança ou à bebida, a me submeter ao interrogatório de uma estranha.
– Vamo-nos? – convidei.
Cláudia fitava o céu e parecia não se dar conta do que eu havia dito. Parecia perdida em meio a divagações.
– Se prefere ficar aqui, eu estarei no salão...
– Irei contigo... – riu-se. – Quero estar contigo!
– Melhor assim... Vamo-nos.
Caminhamos com certa dificuldade pela orla da pista de danças em direção à mesa. Cláudia seguia-me enquanto segurava minha mão, e aproximando-nos da mesa sentamos novamente nos nossos lugares. O garçom prontamente se apresentou, e eu pedi mais duas bebidas.
– Bebes sempre assim? – perguntou a moça.
– Quase sempre...
Não tinha a intenção de alongar o assunto sobre a bebida, nem de falar sobre o consumo, às vezes excessivo, que costumava fazer do álcool.
– Por que bebes? – insistiu.
– Não sei... Talvez para esquecer...
– Esquecer o quê?
– Os números... – murmurei, sem pensar. – Sim, para esquecer os números!...
A menina riu abertamente.
– Não acredito!... Tu bebes para se esquecer daquilo a que deverias amar!
– E quem lhe disse que eu deveria amar os números?
– Digo-te eu... Como podes não amar algo com o qual convives todo o teu tempo?
– Isso significa que, a priori, devemos gostar de tudo aquilo com o qual convivemos... – repliquei, já um tanto impaciente.
– E por que não?! Haverá por certo um motivo que nos faz compartilhar de algo durante algum tempo... E se tal fato acontece é porque de alguma forma nos doamos. E quando há doação, consequentemente existe o amor...
– O que é amor? Não seria uma troca de sentimentos?
Cláudia olhou-me durante alguns segundos, abaixou o olhar e depois voltou a me fitar.
– Não. Amor não é troca; não é permuta... Na verdade amor é incondicional... É adesão! É a sua doação que se torna o amor, no sentido real da palavra.
– Não devias beber tanto! – murmurou.
– Mas você também está se embriagando!...
– Apenas te faço companhia! – riu.
– Mas não fica bem para uma jovem como você tomar bebida junto a um estranho...
– Apenas tomei uma dose para te acompanhar... talvez uma segunda, e não beberei mais. Ademais, o princípio e o moral não são diferentes para o homem e para a mulher. Se por algum motivo podes te embriagar, por que também eu, só pelo fato de ser mulher, não o poderia?
Preocupou-me o diálogo. Muito mais por se tratar de uma conversa com uma desconhecida. Peguei um cigarro do maço que ainda estava sobre a mesa e o acendi.
Traguei uma vez e soltei vagarosamente a fumaça. Sentia-me ainda confuso e envergonhado. Bebi, novamente, e em silêncio fumei todo o cigarro.
– Desculpa-me. – murmurou a moça. – Eu não queria te magoar...
Continuei em silêncio. Sentia-me numa total inépcia. Na verdade eu não sabia o que dizer nem queria iniciar uma possível discussão.
– Não se preocupe... – falei, moldando um sorriso.
– Tenho o grave defeito de dizer o que penso... – falou a moça, tentando se escusar.
– Onde você mora?
Tinha o propósito de mudar o tema da conversa.
– Na avenida... – voltou-se para mim. – Não acredito!
– O quê?
Levou os quatro dedos à boca, como se quisesse tapar uma indecisão. Depois riu, quase abertamente.
– Na avenida... Esqueci-me do nome! Qual é o nome? – indagou.
– Como eu posso saber? É você que reside lá!
– Diz um nome, talvez eu reconheça. Como disse, sou nova na cidade... Vamos, diz!
– Santa Mônica?!
– Isso mesmo! – rindo. – Viste como és inteligente?
– Muito! – respondi, rindo também. – Aqui na cidade só existem duas avenidas...
– Estou feliz porque vais me buscar! – falou, apertando a minha mão entre às suas. – És bom e atencioso comigo!
Olhei outra vez no relógio. Em meio à penumbra pude ver que faltavam cinco minutos para as duas horas. Cláudia observou que eu havia consultado o relógio.
– Quantas horas? – indagou.
– Quase duas... Faltam cinco minutos.
– Santo Deus, meu pai me espera!
A menina agitou-se. Bebeu rapidamente o conteúdo do que restava no copo.
– Como assim, ele está aqui?
– Pedi-lhe que viesse ao meu encontro por volta de uma e meia, e já deve estar à minha espera. – disse, aflita. – Não gosto de fazê-lo esperar, ademais ele se deita muito cedo!
Levantou-se rapidamente e, enquanto apanhava a sua bolsa sobre a mesa, fitou-me nos olhos com gratidão.
– És bom e atencioso comigo... Estava ansiosa por esse encontro!
– Irei à sua casa... – respondi, gentilmente.
Ainda em pé, junto à mesa, curvou-se um pouco sobre a minha cabeça e beijou suavemente a minha face, e, depois de um breve sorriso, voltou-se. E afastou-se em meio aos pares que ocupavam a pista de danças.
Por um momento estive perplexo e surpreso. Bebi novamente do gim e acendi um novo cigarro. Encontrava-me novamente a sós. Todavia, o copo vazio que a moça usara, ainda ali, fez-me pressupor que eu não tivera uma visão ou algum tipo de alucinação. Ergui-me, sobressalto, e caminhei até a varanda frontal do clube, de onde eu poderia ver a entrada principal da casa. Estava deserta. Volteei o olhar ao longo da praça e pude observar o caminhar lento e tranquilo de Cláudia, indo em companhia de um senhor, até se perderem ao longo da calçada, numa esquina da rua.
Retornei à mesa e tomei de novo o lugar, no intuito de me recompor e tentar entender aquele encontro fantástico e enigmático. Entretanto meus pensamentos foram quebrados pela aproximação do garçom, antigo conhecido meu.
– Outro gim? – perguntou ele.
– Uma cerveja, por favor, bem gelada! – pedi.
Voltou minutos depois trazendo na bandeja a cerveja, acompanhada por dois copos.
Depositou a garrafa sobre a mesa, assim como os copos.
– Apenas um copo, obrigado.
– Não estava acompanhado? – insistiu.
– Estava, apenas estava... – retruquei, sem vontade de oferecer explicação.
Servi-me da cerveja e bebi rapidamente o primeiro copo. O calor no interior do clube aumentara ainda mais e deliciei-me com o frescor da cerveja. Permaneci, ainda, por um longo tempo, sem sair do lugar onde estava. Queria ordenar os meus pensamentos, contudo o efeito do álcool, misturando-se ao som e aos ruídos do ambiente, dificultava cada vez mais tal propósito.
A sensação de ebriedade tornava-se cada vez mais forte. Tentei observar novamente o horário, entretanto a penumbra do salão e a visão ofuscada não me permitiram, maior que fosse o esforço, definir os ponteiros do relógio. Resolvi então, após beber mais da cerveja, caminhar até o bar, onde faria o pagamento das bebidas consumidas. No relógio, afixado na parede da retaguarda do bar, pude notar quatro horas e quarenta minutos. Decidi, logo após pagar as despesas, deixar o clube e regressar à minha casa.
Desci, lentamente, as escadas em direção à porta principal do prédio, e atravessando a praça, em meio ao jardim, dirigi-me à rua íngreme na qual eu residia. Meus passos eram lentos, trôpegos e denotavam o estado de embriaguez em que me encontrava.
O relógio da igreja matriz fez badalar cinco horas. Não que eu tivesse contado as suas batidas, mas sim porque minutos antes, ainda no clube, eu havia confirmado o horário. Certamente o sacristão já estaria abrindo as portas da igreja e iniciando os primeiros preparativos para a missa das seis horas. Assim, busquei inutilmente me apressar na tentativa de evitar que alguma pessoa me encontrasse, o que seria um bom motivo para os comentários. Por fim, cheguei a casa onde morava.

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