Bem-vindo!

Sinto-me imensamente honrado pela sua visita. É muito bom estarmos juntos, estreitando o nosso laço de amizade. Se você já leu algum dos meus livros certamente estará mais a vontade para caminhar através das páginas de que se compõe este blog, uma vez que já nos conhecemos. Caso contrário, você poderá encontrar parte dos capítulos dos meus livros “Duas Almas”, “O Prisioneiro do Halo-Vest”, “O Homem Solidão”, e “40 dias de maio’.
Poderá, ainda, ler as opiniões de alguns leitores que manifestaram os pensamentos deles a respeito daquilo que leram. Vale a pena conferir!
Na parte de colunas, poderemos nos encontrar de quando em vez, e, sempre que possível, estarei inserindo algumas mensagens, mostrando o meu parecer sobre os assuntos que nos cercam no dia a dia.
Muito obrigado pela sua visita e pela sua amizade.

Paulo J. S. Milagres




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Contagem a partir de 08/01/2010

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40 dias de maio

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Quando o vi, pela primeira vez, junto ao jardim da casa, a imagem do jovem pareceu-me totalmente estranha e silenciosa. Apenas o ruído do portão alertara-me para a presença dele ali. Então, fitou-me durante alguns segundos, tempo suficiente para que eu pudesse observá-lo nalguns detalhes; os punhos cerrados juntos às coxas e o balançar lento da cabeça totalmente rapada, tal como se também ele quisesse me conhecer.
Procurei uma comunicação através de palavras, entretanto não obtive qualquer resposta, senão um olhar contemplativo do estranho à minha frente. Depois, tentei me manifestar pela linguagem de sinais, e mais uma vez me vi fracassado no intuito de me comunicar com o homem.
Ele jamais conseguiu demonstrar alguma aptidão e tudo o que eu consegui lhe furtar, durante os vinte e tantos anos de pesquisas a respeito daquela personalidade oculta no silêncio, foi a repetição de alguns gestos simplórios numa evolução lenta e extremamente cansativa.
As pesquisas sucessivas e os constantes estudos no campo da neurociência levaram-me a suspeitar de que o homem fosse vítima de algum distúrbio amnésico, até que casualmente me vi diante da complexidade de um relato que me levou a escrever o presente romance.

Paulo J. S. Milagres


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Capítulo 1


O homem caminhava lentamente sobre o solo seco, empoeirado e semidesértico, de um estreito caminho vicinal a Santa Maria, pequeno povoado do distrito de Ribeirão da Serra, naquela tarde de verão.
Acompanhava-o a solidão, e parecia-se perdido.
As crespas barbas, misturando-se aos cabelos negros e já crescidos, pendiam sobre a gola de uma casimira negra e encardida do paletó que lhe servia de camisa. As pernas das calças, recolhidas em pequenas dobras assimétricas pouco acima dos tornozelos, carregavam o pó do caminho que há muito ele percorria. Mostrava o aspecto ruim, mal-apessoado e triste. Poder-se-ia dizer que ele se trajava do que restara de um terno velho, doado por alguma entidade filantrópica que o socorrera em algum momento.
Tinha os pés descalços, cobertos por uma densa lama ressequida da mistura do suor e do pó da terra.
Os olhos castanhos e semicerrados escondiam, ainda, a inaptidão para observar o horizonte.
Parou, momentaneamente, girou o corpo, e retornou não mais de oito ou dez passadas. Hesitou, levou as mãos em conchas ao rosto, esfregou raivosamente as faces, e, vendando os olhos com as mãos espalmadas, ficou imóvel durante alguns minutos, como se tentasse se esconder de alguma loucura. Depois, destampou os olhos, revoluteou, e iniciou uma corrida frenética pasto adentro, até encontrar um monte de cupinzeiro, onde se assentou.
O calor intenso não o molestava. Ele poderia ter se abrigado sob as árvores de uma espessa mata que margeava a estrada ao norte, e afastada dali não mais do que algumas centenas de metros.
Cerrou os olhos, comprimiu as mãos entre os joelhos, e, como vencido pelo cansaço, adormeceu.
Não se alterou ante o ruído estridente do motor de um caminhão que passou velozmente pela estrada, arrastando atrás de si uma espessa nuvem da poeira que se desprendia do chão, nem se manifestou diante da algazarra de algumas crianças que, em pequena fila indiana, retornavam a casa, caminhando sobre a relva amarelada pelo pó atirado na orla do caminho.
Elas faziam o percurso de volta para casa, depois do período de aulas numa escola rural em que estudavam.
– Olhem lá, o homem mudo!... – exclamou o menino, apontando para o homem. – Vamos negaceá-lo?! – sugeriu.
– Papai já falou para não o incomodar! – interferiu a irmã, demonstrando autoridade sobre os demais.
– Todos os dias ele assenta no mesmo murundu!... – manifestou a menor do grupo sem tirar os olhos do homem. – Vou brincar com ele!... – concluiu, diminuindo a cadência da caminhada.
– Vamos, Mariana, sua mãe vai se zangar! – retrucou a mocinha.
Mariana preteriu a observação da amiga e desviou-se, caminhando na direção do homem. Tinha doze anos. A tez morena misturava-se ao castanho-claro dos olhos e dava-lhe um semblante angelical, enquanto os cabelos despenteados, encaracolados e negros que envolviam o pequeno rosto não conseguiam ofuscar a beleza cabocla daquela menina.
Decidida, ela aproximou-se do homem, postou-se ali, e, ajoelhando-se diante do estranho, retirou a mochila que trazia a tiracolo e depositou-a no chão, ao lado direito do próprio corpo. Depois, girou a cabeça lentamente sobre o ombro esquerdo para observar os amigos, até que eles se afastassem e sumissem na curva do caminho.
Finalmente, a sós com aquele homem, Mariana voltou a fitá-lo silenciosamente enquanto os lábios se moldavam a um sorriso ingênuo de contemplação. Depois, tomando da mochila, abriu-a e retirou um pequeno embrulho contendo o que restara do lanche que a mãe dela preparara para a hora do recreio escolar: uma banana-da-terra frita e polvilhada com um pouco de açúcar, e um pedaço do sanduíche de pão francês com doce de leite. Fechou novamente o pequeno saco e, erguendo a mão direita, tocou levemente na coxa do homem, a fim de acordar o amigo adormecido.
O mudo entreabriu os olhos e manifestou-se através de um sorriso tímido, mas que denotava satisfação de rever aquela criança.
– Trouxe o resto da minha merenda... coma!... – disse ela, mostrando o embrulho que acabara de abrir.
– Hã, hã... Hã, hã... – manifestou ele, entreabrindo os lábios. – Hã, hã... Hã, hã... hã, hã...
Sem hesitar, ele estendeu as mãos, acolheu o lanche que lhe era oferecido, e observou-o minuciosamente.
– Pode comer! – insistiu. – Eu guardei um pouquinho para você... Coma!... Po-de-co-mer! – continuou a menina, silabando, quase em murmúrio, numa tentativa ingênua de se exprimir por mímicas, enquanto gesticulava um suave movimento de abrir e fechar a mão direita junto à boca.
– Hã, hã... Hã, hã... – repetiu ele, mordendo no pão.
Mariana assentou-se sobre os calcanhares e apoiou as palmas das mãos sobre as pequeninas coxas, no momento em que observava fixamente o homem devorando a comida que ela trouxera.
O estranho saciou-se, limpou a boca e a barba com o dorso da mão esquerda, e, fitando aquele pequenino rosto, esticou o braço direito para acariciá-lo, num suave toque de dedos.
Assim, durante alguns minutos, ele parecia-se perdido diante da face daquele anjo que lhe sorria.
– Espere! – sussurrou Mariana, erguendo a mãozinha direita espalmada na direção dele.
Da melhor maneira possível, ela tentava se comunicar com o estranho através das palavras entremeadas de alguns gestos simplórios. Ergueu-se vagarosamente e procurou por alguma coisa na relva. Curvou-se, pegou de um pequenino gomo de cana-do-reino, e ajoelhou-se como estava antes. Desajeitada, tentou girar o pequeno graveto entre os dedos indicadores de ambas as mãos.
– Faz, para mim, faz!... – pediu a menina, deixando o gomo cair de entre os dedos.
O homem entendeu a proposição dela. Enfiou a mão direita no bolso do paletó e retirou um pequeno toco de pau.
– Hã, hã... hã, hã!... – grunhiu o rapaz, forçando os lábios sobre os dentes. – Hã, hã... hã, hã!... – continuou ele, rindo satisfeito.
E, para o deleite da criança, o mudo começou a girar a madeira entre os dedos indicadores das mãos, tal como ela pedira, movendo-os numa velocidade incrível, ao mesmo tempo que balançava a cabeça de forma assustadora tanto quanto Mariana se deixava deslanchar em gargalhadas, no momento em que aplaudia, com palmas, o malabarismo do estranho amigo.
O homem, porém, interrompeu-se abruptamente do que fazia e, desviando-se de olhar para a pequenina, pôs-se a observar um antigo ônibus urbano que trafegava ao longo da estrada, transportando alguns moradores da região.
Imediatamente, ele levantou-se, e, como se fugisse de algo que o aterrorizava, iniciou-se numa corrida na direção da mata, embrenhando-se ali, enquanto se perdia entre os cipós que pendiam das árvores e se misturavam à vegetação rasteira.
Ainda que assustada pela fuga alucinada do amigo, Mariana pegou da pequena sacola, levantou-se, e retornou ao caminho de volta para casa.

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Na sala do escritório da casa da fazenda, assentado junto à mesa, Jeremias lia um jornal quando a pequena Mariana adentrou-se correndo ali. Deixou a mochila sobre a mesa e aproximou-se dele.
– Bênção, vovô! – disse ela, abraçando-se ao homem.
– Deus a abençoe, filha! – respondeu ele, afastando o jornal. – Por onde andou a minha pequenina? – inquiriu, beijando a fronte da neta.
A menina ignorou a indagação do avô, e afastou-se.
– Sabe vô, o Mudo? Aquele barbudo? – indagou ela.
– Sim... o que tem ele?
– Sabe como ele roda o pauzinho?
– Não... não sei...
– Assim, oh!... – disse ela, simulando os movimentos enquanto girava os dedos indicadores. – Ele coloca um toco no meio dos dedos e fica girando... girando!...
– Você não o conhece e não deve se aproximar dele! – comentou o homem, deixando o jornal sobre a mesa. – É muito perigoso, para uma criança, aproximar-se de algum estranho.
– Eu só fui entregar um pouco da minha merenda... – murmurou a menina. – Ele é meu amigo... Não sei por que ele corre sempre que vê o ônibus!... O senhor sabe, vô?
– Talvez se assuste... Não sei. – dissimulou ele. – Mas você não deve se aproximar, sozinha, de pessoas estranhas, entendeu?
– Eu sei, mas quando os meninos vão negaceá-lo ele fica muito bravo, até corre atrás deles...
Mariana pareceu perder-se em devaneios.
– Na primeira vez que ele correu atrás dos meninos eu fiquei quietinha no lugar... – murmurou ela, suavemente. – Ele correu, correu, e depois voltou. Eu estava comendo... e ele ficou olhando para o meu pão. Não sei por que tive pena dele... Então, eu pensei que estava com fome e mostrei-lhe o pão que eu comia.
– E o que ele fez?
– Pegou do pão e ficou parado um tempão com ele na mão! Depois, comeu muito depressa... – sorriu. – A mamãe ainda não sabe, vô, mas sempre guardo um pouco da minha merenda para ele!
– Todos os dias?
– Nem todos, – sussurrou ela, meneando a cabeça. – Às vezes, ele não aparece, aí, eu como o que guardei para ele!... Acho mesmo que ele tem medo do ônibus!...
– A sua mãe sabe disso?
– Eu contei para ela... Só não contei que...
Mariana interrompeu-se. Ela escondera da mãe aquele íntimo segredo: dividira com um estranho o alimento que deveria comer durante o período em que estudava.
– O que não contou? – indagou Jeremias.
– Não falei para a mamãe que dei um pouco da minha merenda... O senhor vai guardar segredo?
– Você acha que não devo contar?
– Sim, vô... Ela vai ralhar comigo!...
– E com toda a razão, não é mesmo?
Mariana abaixou a cabeça, sentindo-se frustrada.
Na verdade, ela queria partilhar com o avô aquela atitude de altruísmo que, embora ela ainda não soubesse definir, levava-a a agir com um sentimento de zelo e total abnegação do próprio alimento em favor do desconhecido.
Timidamente, voltou a fitar o avô, desviou-se de olhá-lo e, aproximando-se da mesa, moveu a mochila enquanto tentava soltar a presilha que a mantinha fechada.
– Tenho pena dele!... – murmurou a menina. – Acho que ele não escuta... e só fala hã...hã...
Jeremias pôs-se em pé e aproximou-se da neta, que tentava se acomodar na cadeira junto da mesa.
– Vou guardar segredo, – sussurrou ele, deixando o jornal sobre a mesa. – mas você tem de prometer que não vai procurá-lo quando estiver sozinha, está bem?
– E se ele ficar com fome?! – retrucou ela.
– Certamente, encontrará comida em outro lugar!
– Melhor eu contar para a mamãe...
– Você não me pediu para guardar segredo?
– Pedi... Não é só a merenda... eu acho bonito quando ele roda o pauzinho entre os dedos!... – comentou, retirando um caderno, dentre outros, da mochila. – Sabe, vô, ele fica muito feliz enquanto roda o toquinho!...
Jeremias tocou levemente com os dedos nos cabelos da menina e retirou-se, em seguida, para o interior da casa.
Mariana, enfiando a mão novamente no interior da bolsa, voltou-se para observar o avô que se afastava. Em seguida, ajeitou-se na cadeira, retirou um rústico estojo escolar e, abrindo-o, pegou do lápis e da borracha. Abriu o caderno, empurrou a caixa com a mão esquerda, e começou a escrever, como o fazia todos os dias após retornar da aula.
Era uma criança estudiosa e cônscia das obrigações escolares e, por isso, sempre obtinha as melhores notas nas provas invejadas pelos colegas.
Escreveu durante algum tempo e afastou o caderno depois de deitar o lápis no vinco central entre as folhas. Na realidade, a pequena Mariana ainda tinha o pensamento voltado para o estranho amigo, enquanto se arrependia da confissão que fizera ao avô sobre aquele relacionamento. A personalidade dela não permitiria que escondesse da mãe aquilo que relatara ao avô, uma vez que o íntimo segredo acabara de ser revelado.
Com os cotovelos apoiados sobre a mesa e as mãos em conchas envolvendo as pequeninas faces, Mariana, em completo silêncio, ensaiava mentalmente as palavras com as quais revelaria para a mãe os motivos que a levaram a dividir o lanche com o homem que não conseguia falar. Sentia-se culpada, não pelo fato de ela ter se aproximado daquele estranho, mas por violar a determinação da mãe de que ela deveria comer toda a merenda que levava para a escola, um cuidado materno pela alimentação da filha que nascera antes de completar os nove meses de gestação.
Jeremias retornou à sala e encontrou a pequenina neta imersa em pensamentos. Embora ele fosse um homem de origem cabocla e vivesse do cultivo da cana-de-açúcar, era inteligente, estudioso das técnicas do plantio e de vasto conhecimento de história e de geografia, fato que o levara a se preocupar pela formação dos filhos. O relacionamento contínuo com as mais diversas pessoas, ao longo dos anos, abriu-lhe o entendimento da alma humana. Assim, pouco a pouco, aquele homem de semblante rude foi ajuntando um conhecimento capaz de permitir-lhe analisar furtivamente a personalidade daqueles com quem conversava, no momento em que, trocando o silêncio e a escuta pela fala, penetrava sutilmente pelos caminhos da psicologia. Às vezes sereno, às vezes ríspido, não conseguia esconder uma energia capaz de sondar os mais ocultos segredos da alma. E tudo isso o fascinava.
– Em que pensa a minha netinha? – indagou ele, em meio a um sorriso que lhe era peculiar.
Mariana tirou as mãos do rosto e voltou-se.
– Eu vou contar à mamãe, vô! – murmurou.
– Contar o quê?
– Da merenda que dei para o Mudo!
Jeremias sorriu e aproximou-se.
– Não precisa contar... – disse ele, tocando novamente nos cabelos da menina. – Você não disse que era segredo?!
– Agora já não é mais... não sei por que contei para o senhor... Fiquei com pena do homem...
Lentamente, Jeremias ajoelhou-se, como se quisesse equivaler-se à neta na estatura. Ele conhecia muito bem o caráter de Mariana e ensinara-lhe que olhar nos olhos das pessoas com quem se dialoga é a única fórmula capaz de transformar as palavras num colóquio objetivo e sincero.
– Você quer saber a minha opinião? – indagou ele.
– Eu já decidi, vô, eu vou contar a ela!
– Você faz bem, minha querida... – murmurou. – Não devemos permitir que algum tipo de preocupação interfira no nosso sossego!... Melhor que ninguém, a sua mãe saberá entender a sua generosidade.
Numa atitude de extremo carinho, Jeremias acariciou a cabeça da menina, como se quisesse esconder os dedos em meio aos encaracolados que envolviam aquela pequena cabeça. De há muito ele acostumara-se a esse gesto de zelo, talvez como um antídoto contra um mal que rondara a criança, ou, ainda, como limiar absoluto para mantê-la viva, logo após alguns dias de um parto de grande risco.
Mariana necessitava desse carinho, como um liame da vida. De algum modo, aqueles simples toques e afagos, aos poucos, foram se impregnando na mente daquela criança como excitadores responsáveis pelo envio das mensagens para serem processadas num cérebro de um organismo em precária formação.
– A verdade é a maior companheira da paz! – falou. – Jamais se esqueça disso!
– Eu sei, vovô, por isso fiquei pensando que...
– O quê?
– Não sei... uma coisa boba!
– Diga!
– O senhor não vai se zangar?
– E por que me zangaria?
– A minha merenda eu posso dividir com o mudinho, mas a comida não é só minha!...
O homem esboçou um sorriso de contentamento. Ele acabava de perceber a proposição da pequena Mariana antes que lhe fosse revelada. Era um sorriso que fluía da alma no momento em que coroava o êxito de uma educação que não poupara aos filhos e agora sentia florescer na personalidade de uma garotinha de doze anos.
– Você quer que... – murmurou o homem, sentindo a dificuldade em pronunciar as palavras que se prendiam na garganta. – Você está pedindo para...
Mariana desceu da cadeira e colocou-se em pé junto do homem.
– Quem sabe ele poderia comer, de quando em vez, aqui em casa?!... – indagou ela, tentando mostrar a solução para o impasse que a envolvia. – Assim, ele não ficaria com fome e eu não teria de dividir a merenda!...
– E quanto à sua mãe?... – indagou Jeremias, tentando prolongar o diálogo, mais pelo propósito de ver a reação da neta. – Você acha que ela ficará triste quando descobrir que você fez alguma coisa que não devia?
– Mamãe não vai descobrir!... – asseverou Mariana. –Eu mesma vou contar a ela, o senhor se esqueceu do que eu falei?
– Não... Eu não me esqueci! – sussurrou, roçando os dedos na face esquerda e no queixo. – E onde o vô Jeremias entra nesta história?!
– O senhor... o senhor não vai se importar de dar um pouco de comida, vai?
Jeremias pareceu se perder em divagações, e silenciou durante alguns minutos. Mais que simples conhecedor dos mistérios que envolvem cada ser humano, como todo bom administrador ele aprendera a conviver harmoniosamente com todos os boias-frias, os cortadores de cana-de-açúcar, homens e mulheres que traziam, além da necessidade de trabalhar para o sustento das miseráveis famílias, os mais diversos e inimagináveis conflitos existenciais, motivos ímpares e responsáveis pelo desentendimento entre alguns trabalhadores que, vez e outra, acabavam se ferindo em brigas corporais durante o dia de trabalho. Outras vezes, era comum aparecer entre aqueles que buscavam o trabalho temporário durante a safra, um e outro que se apresentavam como andarilhos que trocavam o prato de comida por meio dia de trabalho. Estes, diferentes dos fichados na fazenda, prestavam valiosa ajuda no carregamento dos caminhões que transportam a cana até as usinas, e, após se saciarem, tornavam ao caminho que lhes era destinado.
Mariana, ainda fitando nos olhos do avô, aguardava silenciosamente a manifestação a respeito daquela ingênua proposta.
– Você não acha melhor terminar o dever de casa, em primeiro lugar, antes de resolvermos sobre a melhor forma de agir nesta situação? – perguntou ele.
– Isto significa que o senhor precisa de algum tempo para pensar, vô? – redarguiu a menina, sorrindo docemente.
– Sim... Quero dizer... É mais ou menos isto!...
Jeremias abriu os braços para a menina, que se deixou abraçar enquanto beijava ternamente a face esquerda do avô e esquivou-se em seguida. Vagarosamente, ela afastou-se alguns centímetros, apenas o espaço suficiente para abrir os braços, e, como num ritual solene, estreitou aquele homem entre os braçinhos e o pequenino corpo, numa adesão total e sublime.
– Amo você, sabe vô? – disse ela, desabraçando-se do homem, no instante em que voltava a ocupar o lugar na cadeira. – Bem sei que o senhor tem soluções para todos os problemas!... – concluiu ela, pegando do lápis e do caderno.
Ele, porém, não teve pressa para se levantar. Colocou as mãos sobre as coxas ainda flexionadas sobre os joelhos apoiados no chão assoalhado de tábuas corridas, deixou que as pálpebras se pendessem sobre os olhos e permaneceu, sem se mover, tal como se orasse silenciosamente durante alguns minutos. Depois, ergueu-se e, curvando-se sobre a cabeça da menina, beijou os cabelos, e saiu para o terreiro na parte frontal da casa, tentando evitar qualquer ruído que pudesse interferir na concentração da Mariana.
Jeremias observou o relógio de pulso, que marcava cinco horas e vinte minutos. Era um homem extremamente metódico e calmo, embora severo e fiel às tradições que herdara dos ascendentes.
Diferente do normal, naquela tarde, aquele homem de origem cabocla, em cuja aparência ainda podia-se notar a pele morena e os cabelos negros e lisos, traços marcantes da união de brancos com índios, resolvera antecipar um dos compromissos diários.
Caminhou lentamente algumas centenas de metros no sentido norte da casa até as margens do rio onde havia um pequeno desnível do terreno que propiciava a formação de uma cascata, pelo excesso da água que vazava sobre uma discreta barragem feita de pedras. Atravessou o rio, sobre a laje, pisando cuidadosamente para não correr o risco de escorregar e aproximou-se de uma rústica comporta feita de madeira de lei, que se movia ao girar uma roda presa na extremidade de um grosso parafuso.
O açude, ainda remanescente da cultura dos avós de Jeremias, fora construído no intuito de desviar parte das águas do ribeirão para ser usada como força motriz de um moinho e, também, para gerar a energia elétrica consumida na sede da fazenda e nas casas adjacentes, residências dos colonos.
Jeremias girou lentamente a roda, liberando um maior volume de água que corria por uma vala escavada na terra, a qual media dois metros de altura numa largura de setenta e cinco centímetros meticulosamente demarcados ao longo de quase quatrocentos metros. Dali, a água era canalizada num tubulão de vinte polegadas de diâmetro, que pendia em um declive de aproximadamente seis metros, até bifurcar-se em dois registros que regulavam o fluxo da água em canos separados e direcionados para o moinho, e para a sala do gerador elétrico.
Durante algum tempo, ele observou o fluxo da água, e comparou a altura da comporta numa escala fixada na parte superior de uma corrediça de metal bruto. Depois, resolveu vistoriar a vala, percorrendo lentamente toda a extensão da margem, até chegar junto ao tubulão, no mesmo ritual de averiguação que fazia há tantos anos.
Era na sala de geração elétrica que ele distribuía a energia, através dos disjuntores montados num quadro de barramento afixado na parede, para cada um dos setores de consumo, e, ainda, controlava a carga elétrica destinada aos colonos, que tinham a eletricidade nas casas apenas no período noturno. Na realidade, a iluminação era oferecida aos empregados gratuitamente, mas restrita.
Jeremias retirou o molho de chaves preso no cinto, escolheu uma, abriu a porta da sala do gerador, e, depois, dirigiu-se imediatamente na direção do painel de controle de energia. Acionou algumas chaves blindadas, e começou a manipular alguns disjuntores enquanto ia conferindo a voltagem e a amperagem destinadas a cada setor, numa operação lenta e consciente.
Terminadas as operações, ouviu o ruído do gerador num zumbido que se misturava ao chocalhar da água nas paletas da pequena turbina, e saiu, fechando a porta da sala em seguida.

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Lançamento do Livro "40 dias de maio" - Livraria Espósito em Ubá - MG
















Cultura ou...

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Não faz muito tempo, assistindo a uma reportagem da televisão, algo muito interessante me chamou à atenção quando, em entrevista ao repórter, uma senhora contava a respeito dos fatos inusitados que ocorriam durante as visitas que ela e sua família faziam a pequenas comunidades.
Apaixonados pela navegação, punham-se ao mar, talvez, não em busca de uma aventura, mas, sim, levados pela fome de um conhecimento que somente é possível quando nos colocamos frente a frente com aquilo que buscamos.
Dentre outros fatos, o que mais me marcou, foi o episódio de uma nativa que, impressionada com a beleza do filho da visitante, confidenciou-lhe o íntimo desejo: de que se lhe fosse emprestado o marido, para que ela pudesse gerar uma criança tão linda como aquela que podia ver ali...
Obviamente, a mulher não aceitou, e, usando de uma serenidade que lhe era peculiar para não ferir à interlocutora, explicou-lhe que elas faziam parte de uma cultura diferente, e que tal atitude viria de encontro aos conceitos da moral e da ética que regem a sociedade da qual ela faz parte...
São fatos assim que me levam a me apaixonar pelo ser humano.
Quando nos deparamos com a simploriedade das pessoas e buscamos mergulhar no mundo em que elas vivem certamente nos tornamos aptos para entendê-las de forma equitativa e despojada.
Quando nos defrontamos com situações que nos parecem caóticas e insustentáveis, é-nos necessário buscar a outra face daquilo com que deparamos, e, calmamente, um entendimento sadio daquilo que nos envolve.
As diferentes opiniões chocam-se a todo momento em todos os setores da civilização.
Questionamos a etnologia, quando nos julgamos os melhores, ao mesmo tempo que nos esquecemos de que muito perto de nós está outro pensamento, outra formação, outra cultura...
Erramos quando queremos impor os nossos costumes e mudar os comportamentos, enquanto poderíamos buscar um complemento para o nosso conhecimento através daquilo que nos é proposto diante das mais inusitadas situações.
Enquanto nos sentimos os melhores e os mais competentes, impedimo-nos de observar a mão de uma criança que se estende ao pequenino amigo, ajudando-o nos primeiros passos, para iniciá-lo na sua longa jornada.
Em minha caminhada, sempre procuro me colocar ao lado da inteligência infinita de Jesus Cristo, e, mantendo-me imerso na minha irreverência, sempre faço a mesma pergunta: “numa situação dessas, como você agiria, meu jovem?!...”

Paulo J. S. Milagres


    Cuidados com a mente


    Um terreno baldio e malcuidado estará sempre aberto a acolher os mais diversos tipos de detritos, sujeiras e, certamente, acabará sendo o habitat dos mais incríveis insetos, répteis e aracnídeos.
    Isso acontece porque, sem que nos apercebamos, contribuímos de alguma forma quando atiramos ou permitimos que alguém atire, ali, a primeira semente de poluição ambiental.
    Entretanto, se nos mantivermos atentos e cuidadosos, jamais permitiremos que um lugar acolhedor e saudável se transforme num local, cuja periculosidade coloque em risco a nossa segurança.
    Quando pensamos na nossa mente, podemos fazer uma pequena analogia com esse pedacinho de terra. Na verdade, a mente funciona da mesma maneira...
    É um campo livre, fertilíssimo, e capaz de transformar qualquer informação, ou pequenos embriões, em uma fantástica realidade que muitas vezes nos surpreende.
    No momento em que só nos permitimos aceitar os pensamentos de paz, de otimismo, de saúde, de alegria e de contentamento, de certa forma, estamos acolhendo as sementes responsáveis pelo mundo de harmonia e de paz que todos almejamos. Assim, tornamo-nos pessoas sadias, saudáveis e extremamente dinâmicas.
    É lógico que nenhum de nós, por mais otimista que seja, deixará de sofrer qualquer tipo de agressão no meio em que vivemos. Nem todos pensamos da mesma forma e plantamos as mesmas sementes...
    Entretanto, se cultivamos o equilíbrio, sempre estaremos imunes à contaminação com pensamentos negativos que poderão nos roubar da tranqüilidade e do discernimento.
    Quando alguém nos ofende com palavras ou atitudes e imediatamente retribuímos com as mesmas ofensas, porque nos ensinaram que não devemos levar agressões para casa, acabamos semeando, sem o mínimo escrúpulo, os pequenos grãos dos quais brotarão o ódio, a mágoa e a instabilidade emocional...
    Revidar agressões, estimular o rancor, aceitar os pensamentos que poderão nos levar à inconstância, tudo isso se transforma em meros artífices que modificam o nosso metabolismo, e acabam se materializando em forma das mais terríveis doenças físicas e psíquicas..
    Ao contrário, enquanto repudiarmos aquilo que não nos convém e não o aceitarmos, a nossa atitude será a de uma branda aragem que varre silenciosamente toda a semente que não conseguiu se enraizar no campo da nossa memória.
    Retirar o pó das sandálias, conforme Jesus Cristo nos ensinou, significa, na verdade, deixar as agressões que sofremos ali mesmo onde as recebemos, e não permitir que tais detritos venham, um dia, prejudicar-nos de modo contundente.
    Da mesma forma, seguindo a inteligência infinita de Cristo, oferecer a outra face não significa literalmente nos expor à segunda agressão, mas, sim, mostrarmos ao nosso agressor uma verdade que talvez ele ainda não conheça... E, quem sabe, estaremos contribuindo para um mundo melhor e menos poluído!...



    Paulo J. S. Milagres



      Amorização?!...

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      “Amorização” é um verbete incomum e não encontrado nos dicionários, pelo menos entre os três eletrônicos implantados no computador que uso para redigir os meus trabalhos. Entretanto, é uma palavra muito difundida entre as pessoas que querem, através do perdão e do entendimento, beneficiar-se desse sublime dom, que é o perfeito relacionamento com o mundo que as cerca.
      Na realidade, essa é uma fórmula encontrada que nos permite exercitar o perdão, elemento fundamental quando buscamos o equilíbrio necessário para a verdadeira felicidade.
      Sem perceber, desde a nossa vida intra-uterina, somos impregnados de “micuins”; agressões verbais involuntárias e muitas vezes ignoradas pelas pessoas que nos cercam e que desconhecem a nossa capacidade de percepção ainda no ventre materno.
      A natureza nos proporciona milhões de neurônios responsáveis pela nossa memória. Da mesma forma, ela se encarrega da eliminação gradativa desses mesmos neurônios ao longo da nossa existência. Pode parecer alarmante, mas a inteligência infinita só nos priva, naturalmente, daqueles de que não precisamos, a não ser em caso de um grave acidente cerebral.
      Assim, pouco depois de a mãe parir, e nos primeiros meses de vida, já perdemos parte dessa cota que nos foi oferecida. Talvez seja esta a prova maior da inteligência infinita, ao nos impedir da lembrança das agressões que sofremos durante o parto.
      Os “micuins” são os pequenos resíduos que se mantêm impregnados na mente de cada um de nós, resultados das agressões e dos maus-tratos de que somos vítimas ou, ainda, marcas de um estado de insatisfação que poderá persistir ao longo da nossa vida.
      Uma criança que ouve um adulto comentar que um rico jamais conseguirá entrar no céu certamente fugirá das riquezas a ela reservada tão-somente pelo medo de se queimar no fogo do inferno...
      Então, passamos a culpar os nossos pais, os nossos irmãos, as pessoas que nos mostraram um deus carrasco, e tudo aquilo que nos cerca, pelas desgraças que nos envolve e por nada dar certo em nossas vidas...
      De repente, aparece um vocábulo, um verbete que não se pode encontrar nos dicionários, e desvenda o nosso maior mistério: nós não sabemos amar!
      Absolutamente, não aprendemos que a nossa natureza é magnífica, e que ela, sabiamente, nos permite monitorar os nossos sentimentos, ao mesmo tempo que nos dá a liberdade para excluir da nossa mente tudo aquilo que é indesejável e que nos rouba da paz...
      Quando se pergunta a alguém que ama o que significa “amorização” a resposta sempre aparece no meio de um sorriso: é simples, é só ficar de bem!...
      É nesse momento que descobrimos o quanto é simples ser feliz...
      É só ficar de bem com a vida!...
      É só não tentar fazer das pessoas, a nossa imagem e semelhança!...
      É só buscar entender que cada ser humano é um indivíduo!...
      Então, como numa magia, todos os “micuins” que ainda impregnavam a nossa mente vão se soltando juntamente com os neurônios de que não mais precisamos.
      Quando entendemos que essa tal “amorização”, que não encontramos em nenhum dicionário, é, na realidade, o significado de uma atitude de perdão, de uma limpeza das sujidades da nossa mente, e de uma fonte do equilíbrio, passamos à experiência do amor e do perdão...
      Talvez a etimologia não seja, assim, tão necessária... Ou, talvez, quem sabe, os dicionaristas algum dia incluam, no imenso universo das palavras, essa tal “amorização”...
      Quem sabe, amanhã, o meu corretor de texto não sublinhe mais, “em vermelho”, esse verbete não totalmente inexistente, mas quase desconhecido...
      E, abonados pelos dicionários, não tenhamos mais a vergonha de colocar em uso os sublimes dons do perdão e do amor!...


      Paulo J. S. Milagres


        O Homem Solidão

        .
        Por Ione Maciel Reis Cusati

        A primeira vez, li devagarinho, saboreando cada frase, cada palavra e, a cada dia, lia um pouco, relia, com pesar de chegar ao epílogo.
        Paulo Milagres, como aconteceu em suas obras anteriores, narra as cenas de maneira tão real, que o leitor se sente presente ali naquela cena, como se fosse um dos personagens do conto.
        Homem Solidão:
        - lição de vida.
        - de forma carinhosa, a dura realidade das mulheres que vendem seu corpo em troca de pão.
        Uma realidade, como nomes fictícios, o autor enfatizou:
        - Solidariedade.
        - Amor ao próximo, sem interesse em recompensas.
        - Noções de como cuidar e conhecer nosso corpo, dentro de uma medicina prática e moderna.
        - Paulo se apegou a pequenos detalhes do poder de Deus sobre nós seres humanos, sobre os animais e plantas, que na rotina diária, estas transformações nos passam despercebidas.
        - Conduzindo de maneira sutil, o enredo da vida dos personagens que criou, ele nos dá uma diretriz para sermos menos egoístas, mais solidários, menos apegos aos bens materiais.
        - Paulo, Jesus o ama e lhe permitirá que continue amando e repassando ensinamentos divinos, através das páginas ditadas por Ele.
        Em minha concepção religiosa, vejo a existência do homem solidão em duas hipóteses.
        1ª- Quando Karla foi falar com o andarilho que lhe deu o pedaço de pão para matar a fome, eu acho que poderia ser Jesus, que se manifestou em forma humana, talvez disfarçado de mendigo, a forma que encontrou para ensinar ou dar aquela jovem nova chance de vida, para “varrer o seu terreiro”.
        2ª- Seria um espírito de luz que se manifestou, e somente ela, Karla, poderia vê-lo, pela sua mediunidade, alguém que em outra vida também passou fome e quem sabe teve problemas na sociedade, com algum vício e depois se recuperou e agora volta para resgatar a dívida com esta mesma sociedade, colocando aquela jovem no caminho do bem. Só ele o via e ouvia, por isto Marieta e os outros não só não viam como também disfarçavam sua incredulidade.
        Também uma 3ª hipótese, todas aquelas pessoas daquela família conviveram com o andarilho, em uma outra vida, o que explica toda aquela aproximação.
        Totalmente, descartado, todos aqueles encontros terem sido fruto da imaginação, fraqueza do corpo, visões, alucinações, etc.
        Sei que O Homem Solidão dá margens à imaginação, só não vou para o lado da fantasia, vou mais para a espiritualidade, que explica tudo, com lógica. Este livro me fez um bem muito grande e cada vez mais me convenço; só vale a pena fazer o bem, ajudar ao próximo, orientar as pessoas que nos procuram, principalmente, os adolescentes.
        Na segunda leitura, destaquei algumas citações, que me permita copiá-las:
        “cada amanhecer é um novo dia.”
        “É necessário que nasçamos de novo a cada manhã.”
        “Somos frutos de uma cultura que nos alicia e nos condena.”
        “esquecemo-nos de que nascemos para ser felizes, ..., nascer de novo significa mudar o percurso do nosso caminho... Significa despojarmo-nos de tudo aquilo que está impedindo o verdadeiro sentido da nossa vida!”
        “...não permitir que os nossos erros maculem, de alguma forma, um futuro de felicidade, que nos é ofertado a cada minuto de nossa vida!”
        “A vida é o bem maior que se é ofertado a cada criação...”
        “... os nossos sonhos deixam de ser sonhos quando os tornamos realidade.”
        “O caminho do reencontro, que é o caminho do autoconhecimento... Na realidade, é o caminho da alma.”
        “O nosso alforje é o livre-arbítrio que nos permite escolher o caminho a seguir...”
        “... o invólucro da verdade reveste-nos da coragem e do destemor imprevisível.”
        “...sentir-nos-emos felizes com a felicidade daqueles que beneficiamos.”
        “Para o ser humano, sentir realizado a ponto de interromper uma busca, significa perder o sentido da vida.”
        “Quando perdoamos aqueles que nos ofenderam, mesmo à distância, a nossa mente se esvazia de tais mágoas, permitindo que um sentimento de paz ocupe aquele mesmo espaço da nossa memória.”
        “ A humildade é a chave mestra da porta da sabedoria.”
        “O respeito mútuo é a base principal para um perfeito relacionamento humano.”
        Assim como São Tomé (ver para crer) procurei na Bíblia, Novo Testamento – S. Marcos, Cap 5 vers. 41, “ Talita cumi” – “Menina, ordeno-te, levanta-te!” Não conhecia esta expressão bíblica e minha descoberta foi uma euforia de uma criança quando descobre as mãos.
        Paulo,
        Interessante, todos nós de alguma forma, temos nossas deficiências, seja física, intelectual ou moral, e o tema da CF/2006 é bem isto, da citação, “Levanta-te venha para cá e vem para o meio. É isto, Karla, uma prostituta carente, que veio para o meio e encontrou ajuda daquela família. Não sei se me fiz entender, concorda com a minha comparação?”
        Parabéns mais uma vez. Continue nesta linda missão que Jesus lhe confiou.
        Eu
        IMRC
        07-04-06

            Noite de Autógrafos na Livraria Café com Letras - Ubá - MG












            Espaço do Leitor


            Para mim, é imensamente gratificante, receber manifestações dos leitores a respeito do que leram e, principalmente, do que puderam colher da leitura dos meus livros, colunas e contos que venho publicando. Críticas são elementos fundamentais que me encorajam a continuar escrevendo e publicando os meus trabalhos.
            Muito obrigado a você que de alguma forma contribui para o meu crescimento.

            Paulo J. S. Milagres


            Sobre o Livro "Duas Almas"

            Paulo,

            Ainda em Rio Branco eu concluí a leitura de Duas Almas...
            A personificação do amor, através da personagem Cláudia, transporta o leitor para uma perfeita degustação da essência ( se assim se pode dizer... mas eu o digo mesmo que não possa ou não seja, figurativa ou gramaticalmente correto).
            O primeiro impulso para a leitura foi, sem dúvida, pelo autor. Depois, o conteúdo fascina, o que também é o autor.
            Que Deus conserve o Paulo na sua mais íntegra versão do Amor e o mantenha sempre envolto da essência. Nós amamos você.
            Que bela missão a sua... que venham novas publicações...
            A sua mágica, talvez, seja a de tornar o essencial visível aos olhos de quem leu Paulo J. S. Milagres.

            Célio J. S. Milagres – Belo Horizonte – MG



            Prezado Paulo,


            Li seu livro. Recordações boas foram lembradas da minha iniciação na vida profissional. Continue escrevendo assim, cada capítulo seu, o interesse pelo romance despertava a leitura.

            Hélio Veríssimo Ferreira – Diadema – SP



            Paulo,


            Duas Almas é um retorno à nossa geração, com todos seus tabus, frustrações, aventuras, inocência, ansiedade, muitos sonhos.
            Viajamos junto com o autor na sequência dos fatos, na maneira minuciosa de narrar as cenas, que para nós leitores é como se fôssemos os protagonistas. As colocações que fez, o sentido que deu ao amor como adesão total, a vitória do bem após muitos conflitos interiores nos faz refletir bastante e ficarmos meditando por horas a fio.
            O que conseguiu transmitir calou-nos muito fundo no âmago dos nossos corações...

            Ione Maciel Reis Cusatti – Ubá – MG



            Paulo,


            Acabo de ler seu livro. Emocionei-me até as lágrimas. Vivi sua frustração, lavei-me em suas águas e comi do seu pão. Acompanhei-o passo a passo. No final, na morte de Manoel para frente, minhas lágrimas corriam quentes e silenciosas. E eu agradecia ao Pai mais uma vez a graça de ter olhos de ver. Agradecia por você existir e poder passar sua mensagem de amor. Que Deus o abençoe sempre, meu irmão! Muito obrigada pela obra. Aguardo outras. Num gesto de agradecimento, meu coração abraça o seu.

            Lulena Machado – Belo Horizonte – MG



            Sr. Paulo,

            Quero parabenizá-lo pela excelente obra e dizer-lhe que imbuirmos da essência é tão necessário quanto o ar que respiramos, e que às vezes somos traídos pelo óbvio exatamente pela constância. É aí que vemos que a repetição é a mãe da retenção. Na vida não há impossibilidades e todo sonho só não é atingível quando há inércia do sonhador. Por mais essa arte, você deixou bem claro que a diferença, é o que fazemos. Parabéns, sucesso e melhoras.

            Alexandre Brum – Ubá – MG



            Paulo,


            ... No dia 16/04, em meu trabalho, uma colega fez um breve comentário sobre o livro que estava lendo: Duas Almas. O nome me chamou à atenção e resolvi adquiri-lo. Quando o livro chegou em minhas mãos, senti-me como uma criança que havia ganhado um presente muito esperado. Iniciei a leitura e deixei me envolver. Ao terminar, uma paz e uma serenidade tomaram conta de todo o meu ser... Em oração, agradeci ao amado Mestre Jesus por tamanha grandeza, e pedi que pessoas do mundo todo sentissem aquela sensação maravilhosa que tomava conta do meu ser...

            Ana Aparecida – Ubá – MG



            Tio,


            Estamos sempre buscando felicidade e realização, entretanto acabamos nos desviando da verdadeira felicidade para buscar conquistas materiais que acabam cada vez mais nos afastando de nossa essência. Todos nascemos imbuídos desta que pode ser percebida na pureza, simplicidade e sinceridade de uma criança. Esta expressa o que realmente sente, e vive as emoções de forma verdadeira e intensa...
            Parabéns pela bela produção e obrigado por nos fazer refletir na forma como estamos direcionando nossas vidas...

            Bina – Belo Horizonte – MG



            Amigo Paulo,


            ...Encontrava-me perdido, mergulhado numa doença para a qual eu não encontrava solução... Olhava ao meu redor e não via saída, nada que pudesse me amparar.
            Quando comecei a ler “Duas Almas”, percebi através da sua mensagem que tudo o que eu estava vivendo não passava de uma falsa doença, e que a cura para tal estava dentro de mim mesmo!... Foi a partir daí que ergui a minha cabeça e comecei a me imbuir de alegria e de contentamento... então, a escuridão em que eu vivia ficara para trás: o pânico já não mais existia... e a terrível síndrome que me acompanhava finalmente caíra por terra!... Quero parabenizá-lo pela maravilhosa obra, pedindo a Deus que continue o iluminando, dando-lhe sabedoria para continuar a sua missão e, cada vez mais, presentear-nos com mensagens grandiosas de amor e paz, que saem do coração de Deus para você.

            Everton de Oliveira e Silva (CHECO) – Ubá –MG

            Paulo José Sabioni Milagres nasceu em Visconde do Rio Branco, MG, no dia 23 de janeiro de 1946. Filho de Izaltino Henriques Milagres e de Maria Sabioni Milagres, residiu naquela cidade até o ano de 1972, quando migrou para a vizinha cidade de Ubá, MG, onde reside atualmente. Casado com Luiza Maria de Queiroga Milagres, é pai de Paulo de Queiroga Milagres e de Maria Aparecida de Queiroga Milagres Vieira.
            Profundo conhecedor da arte gráfica, projetou-se, inicialmente, através da indústria de carimbos de borracha e matrizes para litografia, servindo não só a cidade de Ubá, como as adjacentes, num raio de cem quilômetros. A constante necessidade de clichês em zinco, para impressões tipográfica, os quais exigiam desenhos a bico de pena em nanquim, fê-lo mostrar a sua capacidade artística no desenho, principalmente, na criação de várias logomarcas.
            Respondendo às necessidades prementes em cada setor de uma cidade do interior que se projetava no cenário nacional através da indústria moveleira, Paulo J. S. Milagres, sempre que solicitado, mostrava-se como um “parceiro” na solução dos mais diversos problemas de mecânica e de eletricidade.
            Durante anos consecutivos mostrou, ainda, seu trabalho na montagem e na decoração de “stands” nas EXAPICs de Ubá, desde a sua fundação no Horto Florestal.
            Estudioso incansável e autodidata, iniciou-se na execução de projetos para fachadas de lojas comerciais, na década de 80. A constante preocupação em fazer o melhor, para servir à mais exigente clientela, tornou-o o símbolo de qualidade, contratado por empresas de grande porte para desenvolver projetos na área de comunicação visual.
            Seus trabalhos em aço galvanizado, aço inoxidável, latão, acrílico e nos mais diversos materiais estão espalhados por toda a cidade de Ubá, além de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e diversas outras cidades brasileiras.
            Apaixonado pela arte e pela literatura, sempre encontrou o tempo suficiente para escrever, sem, entretanto, preocupar-se por editar os seus trabalhos.
            Revolvendo seus escritos editou, em 2002, o seu primeiro livro, o romance “Duas Almas”, em 2004, “O Prisioneiro do Halo-Vest”, em 2005, “ O homem Solidão” e, em 2008 “40 dias de maio”, consagrando-se, também, como um dos melhores escritores da nossa época.
            Em outubro de 2003, em sessão solene da Câmara Municipal de Ubá, foi-lhe outorgado o título de Cidadão Honorário Ubaense.


            O Prisioneiro do Halo-Vest

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            Quando iniciamos uma caminhada, por menor que ela seja, sempre buscamos nos precaver contra os possíveis perigos a que estamos sujeitos, sem, entretanto, permitir que a apreensão nos ronde e se mostre como o primeiro obstáculo a impedir a nossa jornada.
            Então, a determinação torna-se a nossa principal aliada, e age como elemento de combustão que nos impele a dar o primeiro passo em direção ao desconhecido ou ao próximo desafio.
            Ao contrário, o medo nos priva de novas descobertas, deixando-nos imersos na mediocridade e invejosos dos que se dispõem a vencer os percalços do dia a dia.
            E, entre a certeza da vitória e o risco da derrota, cabe a cada um de nós optar entre buscar ou não a parte de uma riqueza que só aos valentes é dado conhecer...
            A sabedoria infinita de Deus dá-nos, indistintamente, a mesma semente de inteligência e, do mesmo modo, o livre arbítrio para decidirmos entre usá-la ou não.
            Dessa forma, faz-se necessário que busquemos um entendimento sadio dos valores que nos cercam, e que nos permita reestruturar, dentro da moral e da ética, uma nova cultura aberta ao conhecimento e à verdade.
            O conservadorismo fanático de alguns pregadores que se fazem cegos diante de uma sociedade evolutiva nos leva a questionar sobre os mesmos conceitos de religião e religiosidade com os quais Jesus Cristo se deparou há mais de dois mil anos, quando as prescrições doutrinárias eram impossíveis de serem cumpridas...
            Daí a razão de me apaixonar por Jesus Cristo, que muito antes já se apaixonara por mim.
            De forma clara e corajosa, Ele jamais deixou de gritar contra as aberrações a que eram submetidos os mais fracos e os mais humildes, ao mesmo tempo que oferecia a todos a vida em abundância... uma verdadeira libertação!...
            Apegando-me, pois, à proposição dessa filosofia, fui crescendo no conhecimento e na certeza de que, aliando-me ao Divino Mestre, também eu poderia partilhar das venturas do Seu reino de paz e harmonia.
            Seguir a filosofia cristã, na sua amplitude, significa romper barreiras e quebrar liames que nos atam às crenças arcaicas cujo resultado a nenhum outro lugar nos levam senão ao limitar da nossa consciência, impedindo-nos de crescer no conhecimento da verdade de que Jesus falou.
            Certamente, existe uma grande diferença entre os seguidores de Cristo e os devotos de igrejas...
            E, mais uma vez, prevalece o livre arbítrio.
            De quando em vez, a inteligência infinita nos chama a um momento de reflexão... e não devemos fugir-lhe!...
            Então, o inesperado, porém previsível, acontece-nos e nos coloca num trono onde a sabedoria se posta ao nosso lado, dando-nos a condição de colher as respostas de que tanto precisamos para enfrentar as adversidades a que fomos submetidos. E a presença de Deus torna-se real e quase palpável em meio a tantas evidências.
            Logo após sofrer um acidente de trabalho, vi-me à mercê de uma longa analepsia, cuja espera me permitiu crescer em conhecimento e, ainda, colocar em teste a minha confiança absoluta em Deus Pai e no poder de restauração dele.
            Assim, a cada lembrança dos olhares estarrecidos das pessoas que puderam assistir à minha queda e logo após me verem caminhando, mais e mais eu pude constatar que eu fora, de fato, amparado pelos braços do meu amigo Jesus, que se faz presente em cada segundo da minha vida.
            A experiência de carregar quatro parafusos cravados no crânio e o peso de um cinturão de acrílico, parte de um aparelho cuja finalidade era imobilizar a coluna cervical, jamais poderiam sobrepor-se ao meu regozijo por me sentir incólume apesar das sequelas que me acompanharam nos cem dias aprisionado ao halo-vest.
            Ao transcrever esse relato, que agora passo às suas mãos, pensei muito em você que por certo se unirá a mim para exaltarmos juntos ao amor maior, que nos vivifica a cada momento das nossas vidas.
            Este livro é, na realidade, o elo que nos torna, mais e mais, amigos!

            Paulo J. S. Milagres

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            Capítulo 1


            Nada diferenciava aquela manhã de sexta-feira, dia 17 de janeiro de 2003. O mesmo sol de verão, erguendo-se ao leste, já ejetava seus raios no chão tosco da oficina no andar térreo da minha casa, mesmo lugar em que, durante a noite, abrigam-se os carros da minha família.
            Ali, meu ajudante e eu, executamos a maior parte dos projetos de fachada para lojas comerciais, o que consiste na confecção de letras, desenhos, enfim, tudo que concerne à comunicação visual das empresas que contratam os meus serviços.
            A nossa proposta, naquela manhã, era completar mais um trabalho, já na sua fase final, com a aplicação de duas logomarcas. Assim, após a nossa breve oração da manhã, levamos para o local algumas peças de andaime metálico, que serviriam de base para a plataforma de trabalho. Duas torres foram erguidas à altura de cinco metros, ao nível da parte superior de um pequeno telhado de aço preso a uma estrutura de ferro, que protegia a parte frontal do escritório. Algumas peças de madeira foram afixadas na parte alta das estruturas e apoiadas sobre as telhas junto à parede. Ali, foram distribuídas algumas tábuas, completando o patamar para a execução do trabalho.
            Para maior segurança, seria necessário prender todo o bloco à parede através de cordas ou cabos de aço, evitando, assim, que todo o patamar se deslizasse ao excesso de peso.
            Como de praxe, eu era o primeiro a subir e verificar a segurança do local de trabalho, e, enquanto me dirigia à torre, orei a Deus pedindo que nos ajudasse naquela lida, e, ainda, nos livrasse de quaisquer riscos. Benzendo-me, fiz o Sinal-da-Cruz, e escalei as peças sobrepostas e encaixadas, até o topo da plataforma, que, aparentemente, demonstrava estar segura.
            E, tendo achado tudo conforme, pedi ao meu ajudante as peças para alinhamento e apoio do material a ser afixado, assim como a primeira parte da logomarca, equivalente a um triângulo, que, após colocado, seria utilizado como base para os demais componentes.
            O rapaz prendeu uma corda ao triângulo, e puxei-a até o patamar. Logo em seguida ele subiu, enquanto eu apoiava a peça na barra, e movimentou-se para o local onde eu me encontrava. Ainda agachado, eu procurava ajustar os pontos de fixação à fachada, quando percebi que o caibro, logo sob meus joelhos se deslizava, e só então me lembrei de que não havíamos prendido a torre à estrutura do telhado.
            – Vamos cair! – gritei. – Salte!...
            Completamente, desprotegido, senti-me arrastado pelo assoalho e, em vão, tentei prender meu pé esquerdo em algo que evitasse a minha queda em meio àquele amontoado de ferros e madeiras.
            No chão de asfalto, em meio aos destroços, procurei visualizar o meu ajudante, que já se encontrava em pé, ao mesmo tempo que alguns funcionários do escritório corriam assustados com o grande barulho provocado pelo acidente.
            Ainda caído, procurei movimentar os braços e as pernas, e, ao verificar que eu os conseguia mover, elevei os olhos ao infinito e, num gesto de louvor, agradeci a Deus, em alta voz:
            – Obrigado, meu Deus, porque o Senhor nos poupou!
            Imediatamente, o proprietário da loja se aproximou, e, muito assustado, perguntou sobre o ocorrido. Acalmei-o, no entanto, dizendo que estava tudo bem.
            – Pode levantar-se? – indagou ele.
            – Sim... – respondi, ainda em estado letárgico.
            Entretanto, ao tentar me levantar, senti uma leve dor muscular na nuca.
            – Dói-me no pescoço... – murmurei.
            – Vamos para o hospital! – ouvi.
            Cuidadosamente, duas pessoas me ajudaram a erguer, e, ainda desequilibrado, caminhei em direção a um veículo que, estacionado nas imediações, já estava disponível para nos levar imediatamente ao pronto socorro.
            O Hospital Santa Isabel distava algumas centenas de metros do local do acidente. Assim, poucos minutos depois já nos encontrávamos diante da portaria de entrada para atendimento imediato, e logo um enfermeiro se apresentou, conduzindo uma cadeira de rodas, que colocou à minha disposição. Já no interior do hospital, e depois de assinar o documento do SUS, fui levado até a sala de raios X.
            Preocupado com o estado físico do meu ajudante, pedi ao médico que o submetesse aos mesmos exames, contudo eles foram dispensados, pois o rapaz nada sofrera, exceto o grande susto.
            Novamente, na sala de espera, local de acesso para os consultórios médicos de emergência, e tendo as radiografias em mãos, eu aguardava ser atendido, ainda assentado na cadeira de rodas. Nos meus pensamentos dispersos, à mercê dos olhares curiosos de outros pacientes que ali esperavam o atendimento, eu procurava não me ocupar com o acidente, embora persistisse uma leve dor na cabeça, e na região muscular do pescoço. Em outras ocasiões eu sofrera quedas de escadas que se deslizavam ou quebravam seus degraus de madeira, porém, era a primeira vez que me levavam a um pronto-socorro, numa emergência.
            Vez e outra, funcionários do hospital que circulavam na área, indagavam surpresos a respeito da minha presença ali, e eu os respondia, buscando não perder a descontração:
            – Um andaime caiu... Esqueci-me das azinhas e caí com ele, mas Deus me segurou nos seus braços!...
            E, sorria sempre, a qualquer indagação.
            No silêncio do meu íntimo eu continuava a agradecer a Jesus Cristo pela sua misericórdia, pelo seu amor infinito, e, na minha intimidade com Ele, ainda suplicava:
            “Misericórdia, Senhor!”
            Impressionante como a nossa intimidade com Cristo nos traz calma e paz. E a certeza de que nunca estamos sós carrega consigo o sentimento de que somos sustentados por uma força suprema, que não nos permite qualquer temor, maior que seja o transtorno que nos ronda. Então, o sorriso se faz mostrar em qualquer situação, por mais caótica que ela nos possa parecer... e tudo se torna efêmero diante de tamanha riqueza...
            Luiz Eugênio é médico neurologista. Com seu espírito alegre e quase sempre irreverente, sua dedicação à profissão fê-lo tornar-se o mais respeitável neurocirurgião da nossa região. Moradores na mesma rua, não raras vezes nos encontrávamos para o bate-papo, e uma relação de estreita amizade se formou entre nós.
            Eu ainda aguardava ser atendido pelo médico, quando o Luiz Eugênio entrou no saguão, e, caminhando na minha direção, indagou:
            – Uê, Paulo, o que aconteceu?!
            – Queda de andaime... – respondi.
            – Dê-me isso aqui! – completou, enquanto tomava as radiografias dentre as minhas mãos.
            Ele adentrou-se no longo corredor e, retornou, depois de alguns minutos.
            – Venha comigo! – ordenou o médico.
            Um enfermeiro que o acompanhava tomou a cadeira de rodas, onde eu me encontrava, e conduziu-me até a sala de diagnóstico por imagem, no final do corredor. Ali, Luiz Eugênio solicitou a tomografia computadorizada da coluna cervical ao seu colega Ronaldo, que imediatamente pediu à enfermeira assistente que me ajudasse a retirar a camisa.
            – Puxa! – exclamou a moça. – O senhor transpira sempre, tanto assim? – completou, deixando a roupa sobre uma cadeira ao lado.
            Por um momento deixei mostrar um pequeno sorriso.
            – Preste atenção... – falei, dirigindo-me a ela. – Eu estava trabalhando à altura de cinco metros, com o sol refletindo no meu corpo, depois de transportar seiscentos quilos de andaimes e tábuas... Em seguida aquele treco caiu, fazendo-me despencar em meio àquela parafernália... O que você acha que provocou tamanha transpiração? – redargui, rindo solto.
            Ela abanou a cabeça negativamente e riu também.
            O médico pediu que eu me deitasse na maca, que seria introduzida no túnel.
            – Você vai prender a respiração o máximo possível... – recomendou ele. – Evite até mesmo de engolir em seco!
            – Dependerá do tempo que você me deixar lá dentro. – falei, demonstrando total descontração.
            Fui introduzido na máquina, onde me preocupei em estar completamente imóvel. Eu tinha o palato ressequido, e, por mais que eu me esforçasse em cumprir as exigências do radiologista, senti necessidade de engolir, o que fiz duas vezes. Aliviei-me, porém, ao notar que a mesa se deslizava entre a porta do equipamento.
            – Engoli em seco duas vezes! – murmurei, tentando confessar a minha negligência. – Se precisar, volto de novo! – completei, rindo.
            – Tudo bem! – exclamou o homem, desconsiderando a minha molecagem.
            Com a ajuda da enfermeira, assentei-me na maca, e, como se aguardasse o veredicto de uma sentença, esperei o retorno do Luiz Eugênio, que apareceu minutos depois.
            – Paulo!... – disse ele, mostrando o seu sorriso amigo e peculiar. – Eu vou ser curto e grosso: você fraturou a vértebra áxis. Por um milagre você não ficou tetraplégico! Vou colocar um aparelho de fixação e vai ficar com ele de três a seis meses. Você pode agradecer a Deus por ainda estar em pé!...
            Ele descarregava a sentença em tom de voz tranquilo e sereno. Entretanto eu o interrompi:
            – Tenha certeza, meu jovem, eu já agradeci a Deus! – exclamei, mantendo a minha calma.
            Fiz um pequeno silêncio.
            – O que você está esperando? – indaguei. – Vamos começar a recuperação já! – insisti.
            Luiz Eugênio sorriu, e completou:
            – Ligue para a sua casa e avise à Luiza e ao Paulinho que eu quero conversar com eles!...
            Meu ajudante, que estava junto a mim, necessitando ir até a oficina, incumbiu-se de transmitir o ocorrido à minha esposa e ao meu filho. Eu não queria assustá-los, e achei melhor não lhes comunicar por telefone.
            Outra vez o enfermeiro aproximou-se e ajudou-me a sentar, cuidadosamente, na cadeira.
            – Leve esse cara para o 32!... – determinou o Luiz Eugênio. – Mas, antes, raspe a barba e tire essa cabeleira dele! – riu o médico. – Vamos ver esse cara sem a barba!!! – falou, ainda rindo.
            – Não, não! – relutei. – Na minha barbinha ninguém mete a mão!... Meu pescoço nada tem com a barba! – sorri.
            Um rapaz aproximou-se de nós. Ele trazia dois tipos de colar cervical, entregou-os ao médico, que observou um a um.
            – Este serve! – concluiu ele, devolvendo o outro ao rapaz.
            E aplicou-o, imobilizando-me o pescoço.
            A barba modelada e os cabelos mais longos faziam-me sentir bem e eu os preferia. Não raro algumas pessoas mais íntimas comentavam a respeito do meu desleixo, e sempre me aconselhavam a retirar a barba e a manter os cabelos mais curtos. Porém eu relutava em conservá-los e, naquele momento, via-me à mercê da determinação do amigo.
            O quarto número 32, no terceiro e último andar, era provido de quatro leitos, que se destinavam ao atendimento dos doentes atendidos pelo SUS – Sistema Único de Saúde, órgão mantido pelo governo federal. Com a minha chegada, a lotação de pacientes no quarto ficava completa, uma vez que eu ocuparia o segundo leito, que se achava vazio.
            O rapaz ajudou-me a deitar. E, pela primeira vez, durante toda a minha vida, eu ocupava um leito hospitalar.
            – Qual é o seu nome? – indaguei ao enfermeiro, que me conduzira até ali.
            – Lúcio! – respondeu o rapaz gentilmente. – O senhor tem barbeiro particular?
            – Sim, contudo não acho necessário incomodá-lo... Não há barbeiro no hospital?
            – Está falando com ele!... – gargalhou o moço.
            – Pelo amor de Deus! – exclamei. – Já não basta uma confusão?
            – Espere um momento... Cuidado para não se mover!
            E, afastando-se do quarto, deixou-me na companhia dos outros internos.
            – O que aconteceu, moço? – perguntou o homem, que ocupava o último leito.
            – O andaime tombou... – respondi. – E, como não tenho asas, Deus segurou-me nos braços!
            O homem da primeira cama, ao meu lado esquerdo, disse qualquer coisa, que eu não entendi. Ele demonstrava me conhecer.
            – Não posso me virar, mas estou bem. – murmurei.
            – Houve a fratura de uma vértebra, nada demais, pela graça de Deus!
            – Deus é bom pai!
            – Sim... como é!
            E silenciei sobre qualquer outro comentário. Cerrei os olhos e procurei refazer-me de tranquilidade. Eu precisava concatenar meus pensamentos, trazendo à mente todas as imagens do que ocorrera naquela manhã.
            Talvez nenhum acidente tivesse ocorrido se eu não me esquecesse de amarrar a corda de segurança prendendo o bloco da torre ao telhado. Também, poderia ter acontecido desastre maior se a tivesse colocado... Então, não querendo interferir nos desígnios de Deus Pai, achei melhor não me questionar, nem me culpar do ocorrido. Assim, mais uma vez, agradeci a Jesus Cristo pela integridade física, intacta, do meu ajudante.
            Por certo, ele já deveria ter notificado à minha mulher e ao meu filho.
            E, nesse estado de semissono, senti a aproximação de Luiza, minha esposa. Ela aproximou-se, aflita, do meu leito, no momento em que eu descerrava meus olhos. Estendi-lhe o braço esquerdo, e tocamos as nossas mãos.
            – Eu amo você! – disse ela, demonstrando-se agitada.
            – Também a amo... – murmurei. – Fique calma, estou perfeitamente bem! Como vê, Deus segurou-me nos seus braços e estou perfeito!!!... Uma pequena fratura, algumas pequenas escoriações... – comentei sorrindo, e aduzindo-lhe tranquilidade. – O Paulinho já sabe? – indaguei, ainda.
            – Sim, ele está na portaria, aguardando o doutor Luiz Eugênio...
            – Ótimo... O Luiz dirá tudo a ele!
            – Subi rapidamente... queria ver como você está.
            – Parece que o Luiz quer falar com você também.
            – Vou descer, o Paulinho está preocupado. Fique bem tranquilo... Deus está com você.
            – É claro que está!... É você quem deve se acalmar. O enfermeiro virá retirar minha barba e aparar meus cabelos.
            Uma senhora aproximou-se do meu leito e conversou com a minha esposa a respeito do que me acontecera. Ainda ali, falou da presença do filho que ocupava a cama à minha esquerda. Depois, voltou-se para ele, e puseram-se a falar.
            – Vamos providenciar um apartamento. – disse Luiza, voltando-se para mim. – O Paulinho virá aqui, e, depois de ele descer, iremos até a casa. Voltaremos para verificar toda a documentação de praxe.
            – Tudo bem, mas façam com a maior calma. Diga ao nosso filho que estou perfeitamente bem... só terei algum tempo de férias... – falei, sorrindo.
            – Fique com Deus! – exclamou Luiza, afastando-se.
            – Estou com Ele! – reafirmei.
            Durante alguns momentos, permaneci a sós com os meus pensamentos dispersos. Logo depois, Paulinho entrou no quarto.
            – Olá, pai, tudo bem? – indagou ele, aproximando-se.
            – Tudo bem, filho... graças a Deus!... Vocês estiveram com o Luiz Eugênio?
            – Sim, ele explicou-nos tudo... Mas você vai ficar bom logo!
            – Sim, se Deus quiser!... E Deus quer, tenha certeza disso!!! – falei, demonstrando total serenidade.
            – O doutor Luiz falou num aparelho que você deverá usar... Ele já ligou para os fornecedores e avisou-os de que eu entraria em contato com eles... Ligarei lá da nossa casa.
            – O Luiz é muito amigo... ele fará o melhor que se fizer necessário... É um ótimo médico. – afirmei. – Sabe o que aquele cara fez?
            – O quê?
            – Exigiu que eu retirasse a barba e cortasse os meus cabelos... Ele é mesmo um... – brinquei, descontraído. – Agora você está nas minhas mãos, disse ele, e você tem de fazer o que eu mandar... Foi o que ele falou! – gargalhei.
            Paulinho sorriu, também.
            – Vocês já almoçaram? – preocupei-me.
            – Não, pai, assim que soubemos, viemos rapidamente. Tivemos dificuldades em chegar aqui, por causa do horário de visitas. Nós vamos providenciar a sua remoção para um apartamento, assim teremos mais liberdade...
            – Sim, meu filho, entretanto vocês devem almoçar antes de qualquer coisa. Estou bem aqui, fique tranquilo.
            – Então vou descer... Fique com Deus! – disse ele, tocando levemente no meu ombro.
            Alguns membros da igreja protestante chegaram para visitar e orar pelos doentes, e iniciaram suas orações. Tal como os da renovação carismática católica, que eu conheço relativamente bem, eles traziam consigo, sob o braço, a bíblia sagrada. Consciente da necessidade do louvor a Deus em qualquer situação, eu procurava ouvir os detalhes da pregação, embora não concordar com a didática de ensino deles a respeito da religião. Particularmente, eu creio no Deus amor, fonte de vida e felicidade, contrário ao Deus carrasco a que pregam, e que castiga os negligentes.
            Eu adoro Jesus Cristo tanto mais quanto eu conheço a inteligência infinita dele, que lhe permitiu curar, de maneira espetacular, os enfermos que se aproximavam dele, e que, através da fé dos que nele crêem, ainda continua curando e libertando.
            Um dos participantes, de quem eu apenas ouvia a voz, tomando o curso da pregação, falava da misericórdia de Deus e da necessidade de conhecermos a bíblia através de uma constante leitura. Porque, no capítulo tal, Deus falou isso, e falou aquilo... e disparou, dizendo que se estamos enfermos é por causa das nossas iniquidades...
            Novamente, a letargia me trouxera o sono, e um leve dormitar, embora eu relutasse em não dormir. Mesmo com o acompanhamento médico, eu preferia não imergir em um sono profundo. Entretanto, na comodidade do leito, acabei vencido pelo cansaço e, tendo dormido um pouco, somente acordei com o regresso do Paulinho, que se aproximou do leito.
            E, com os olhos ainda semicerrados, pude vislumbrar o seu corpo junto a mim.
            – Olá, pai, como está passando? – indagou ele.
            – Estou bem, filho. Graças a Deus, tudo bem!...
            – A mãe ficou lá em casa, dando alguns expedientes. Eu vim para ficar com você... Ela ligará para aqui, quando estiver resolvido algumas pendências... Vou buscá-la, assim que ela telefonar.
            – Ainda estou aguardando o Lúcio...
            Ficamos em silêncio.
            – Você deve retornar ao trabalho. – preocupei-me.
            – Eu avisei ao departamento a respeito do ocorrido, e estou dispensado dos compromissos de hoje para cuidar de tudo que você necessitar aqui... Segunda-feira continuarei o meu trabalho na firma... Não precisa se preocupar.
            Lúcio adentrou-se no quarto acompanhado por outro rapaz, que trazia um embrulho na mão. O semblante alegre do moço misturava-se à cor negra da sua pele, enquanto seus lábios deixavam mostrar o sorriso despreocupado.
            – Pronto, senhor Paulo... Trouxe um auxiliar! – disse o moço, deixando o embrulho sobre a cama.
            – Agora que me ferrei!... – brinquei. – Como se não bastasse um, apareceram dois...
            – É claro! Um para a barba e outro para o cabelo! – riu-se.
            E puseram-se a trabalhar. Ao mesmo tempo que Lúcio tosava a minha barba, seu companheiro retirava grandes mechas dos meus cabelos. E, durante alguns minutos, eu vi perecer um hábito de mais de trinta anos...
            – Poupe, pelo menos, o bigode! – supliquei.
            – Está bem... – murmurou Lúcio, sensibilizando-se ao meu apelo.
            E, como uma ovelha nas mãos do tosquiador, deixei-me vencer ao acaso do que acontecia, enquanto um estado de letargia me distava da realidade presente. E, ainda, no meu silêncio interior eu orava ao Pai Celestial:
            “Dê-me forças, Senhor, nessa jornada que estamos iniciando... Porque sei que o Seu Filho Jesus está comigo, jamais me sentirei sozinho. Devo resignar-me, Senhor, e só o conseguirei com a sua força em mim... Abençoe toda a minha família... e os meus amigos, principalmente, aqueles com quem tenho maior relacionamento... Obrigado, Senhor, pela sua presença viva em minha vida... Muito obrigado, Senhor, pelo momento que vivo agora, amém.”
            – Ei, meu irmão! – disse Maria Teresa, adentrando-se no quarto.
            A voz da minha irmã soou no recinto. Ela reside em Belo Horizonte, na companhia do seu marido e dois filhos. Sua filha, já casada, mora na mesma região metropolitana. O casal viera passar alguns dias na casa do nosso irmão João, que mora numa cidade próxima vinte quilômetros daqui. Em dias anteriores eles estiveram em minha casa para nos visitar e, naquela data, deveriam retornar à cidade onde moram. Por certo, minha esposa já os teria avisado a respeito do acidente, e, antes de seguirem viagem, vieram ao hospital para me ver, embora o horário liberado para isso já tivesse terminado. De qualquer forma eles estavam ali, o que me trouxe grande satisfação.
            – Olá, irmã... você já sabe da façanha! – falei. – Estou bem, graças a Deus!
            – A Luiza providenciará os papéis para a sua remoção daqui para o apartamento...
            Vocês terão mais liberdade ali.
            – Sim, será melhor. – murmurei.
            – Se vocês quiserem eu poderei ficar para os ajudar!
            – Agradeço, irmã, mas não será necessário. Você tem os seus compromissos, ademais estou bem. – agradeci.
            – Foi o que a Luiza disse, mas se precisarem de mim, disponho-me, sim? – prontificou-se ela, mais uma vez.
            – Que bom que você veio, eu amo você! – falei, em meio à emoção.
            – Eu também amo você! – disse ela, sorrindo. – Vou descer, o Marcos virá aqui, também.
            – Ficarei feliz em vê-lo.
            – Estou levando os livros!
            – Sim... espero que venda muitos! – sorri.
            Ela aproximou-se do meu rosto e beijamo-nos. Ainda despediu-se do Paulinho, e saiu do quarto.
            Junto à porta, alguém chamou por meu filho e pediu-lhe que telefonasse para a minha casa.
            Por um momento, perdi-me em pensamentos.
            – Vamos tomar o banho? – disse o Lúcio.
            Sua voz soou, roubando-me das minhas divagações.
            – Sim, – respondi. – antes eu necessito fumar um cigarro! – completei, tentando achar o maço de cigarros no bolso da camisa.
            Só então percebi que eu tinha o peito nu.
            – A minha camisa... onde está a minha camisa? – indaguei, preocupado.
            – Eu a coloquei no armário. – disse o rapaz, dirigindo-se ao pequeno banheiro do quarto. – Contudo não deve fumar aqui! – alertou.
            – Pois tenha certeza de que ninguém me impedirá!... – relutei. – Do contrário, fumarei lá fora... – sorri.
            Caminhei, lentamente, até o pequeno armário perto da
            porta do banheiro. A dor lombar dificultou-me agachar, e, com um pequeno esforço, consegui apanhar o isqueiro e o maço de cigarros. Discretamente, acendi um e fumei-o ali, soltando a fumaça vagarosamente e soprando-a através da fresta da janela.
            – Vamos ao banho? – insistiu o rapaz.
            – Sim. – prontifiquei-me, atirando o toco do cigarro no vaso do estreito banheiro.
            – Melhor despir-se aqui mesmo!
            As visitas já haviam deixado o quarto, embora a porta ainda permanecesse semiaberta. Despido da camisa, retirei também as calças e a cueca. Olhei, detido, a coxa esquerda, a virilha e, por um instante, preocupei-me com o que eu via. Além de algumas escoriações, um hematoma muito escuro cobria toda a região da virilha esquerda. O inchaço na bolsa escrotal multiplicou o seu tamanho natural. Cerrei os olhos como se quisesse fugir ao que acabara de ver. Voltei a abri-los. Era apenas o começo de uma realidade, que já se fazia presente, e eu não poderia fraquejar. Minha descontração, naquele momento, era essencial para a minha recuperação. Entreguei o meu estado de estupefação a Deus, pedindo-lhe que nada além do superficial e visível, tivesse sido afetado. E, voltando-me para os demais internos, mostrei-me.
            – Olhem aqui, pessoal, garanto que vocês nunca viram isso!... – exclamei, buscando alívio para o meu susto.
            O silêncio de todos ecoou como um grito perplexo.
            Um movimentar junto à porta do quarto chamou-me à atenção. Voltando-me, notei a presença do meu cunhado Marcos.
            – Olha aqui, cunhado, veja você também! – falei.
            – Puxa vida! – respondeu Marcos, demonstrando sua preocupação pelo que acabara de ver. – Caramba!... E aí, Paulo?... Além disso, como você está? – completou.
            – Estou bem, graças a Deus!
            – Foi feio, hein cara?!
            – A presença de Deus é mais forte!
            – E como!
            Marcos sempre se mantinha nos diálogos com frases curtas, mas sinceras. Observei que o seu estado emocional, naquele instante, não lhe permitia alongar o nosso colóquio.
            – Vou tomar o banho agora...
            – Tudo bem, fique com Deus! – disse Marcos, saindo do quarto.
            – Vão com Deus!...Cuidem-se na estrada! – falei.
            Fiquei feliz com aquela visita. O enfermeiro ainda me esperava junto da porta.
            Cuidadosamente, ele me conduziu até o chuveiro, e, mostrando-me os cuidados que eu deveria ter durante o banho, abriu o registro da ducha.
            – Não se preocupe com nada! – insistiu ele, pegando do sabonete.
            – É a sua função aqui?
            – Pode acreditar! – riu.
            – Acredito, contudo tenho certeza de que você nunca lavou um cara bonito assim!
            – Nunca! – gargalhou.
            Terminamos o banho e retornei ao leito, acomodando-me novamente ali.

            * * * * *


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            Cotidiano - (conto)


            Jonathan não se sentiu logrado da sua rogativa. Era a terceira vez, naquele dia, que ele entrava na agência bancária, dividido entre a expectativa de conseguir o dinheiro para cobrir um cheque e o medo de que o banco efetivasse a devolução daquilo que originariamente seria uma ordem de pagamento a vista. Um cheque pré-datado que, meses antes, ele havia trocado com um agiota, para honrar o pagamento de um outro empréstimo. Aproximou-se da mesa do gerente, puxou a cadeira, e assentou-se, sem a menor formalidade.
            – Tem certeza, caro Manoel, de que o cheque não foi devolvido?
            – Absoluta! – respondeu o gerente, sem se mover.
            – Posso ficar tranquilo?
            Não obteve resposta. Também, não quis molestar o amigo mais uma vez. Limpou o suor da fronte, com um breve passar das mãos, e ergueu-se novamente para reiniciar uma sofrida via-sacra no intuito de angariar algum dinheiro que pudesse suprir aquela única conta corrente bancária que ainda lhe restava, já ameaçada do encerramento definitivo.
            “Se perco esta conta estou ferrado.” – pensou ele, enquanto saía da agência.
            Não conseguia trabalhar. Ao longo dos anos a mesma coisa: um novo empréstimo para pagar o anterior, e a cada cheque passado a um novo agiota ele sentia o aumento extorsivo da dívida... mas o cheque era o único documento que ele usava sem a necessidade de um avalista.
            Fazia dois dias que o cheque vencera e, no entanto, ainda não tivera notícia de que ele fora pago ou devolvido.
            “Talvez alguém tentara descontá-lo diretamente em um dos caixas...” – pensou, enquanto se culpava pela falta de cuidado em indagar, também, dos demais funcionários.
            Por um instante duvidou da afirmação do gerente e quis voltar ao interior do banco, afinal ele deixara a agência sem a resposta concreta da sua última indagação. Sentiu-se enlouquecer e retornou alguns passos na direção do banco. Deteve-se momentaneamente. Não deveria incomodar o seu amigo com novos questionamentos. Talvez fosse melhor deixar que o banco devolvesse o cheque. As ameaças do agiota terminariam com a perda do crédito, mas ele poderia propor o pagamento parcelado da dívida. Aliviou-se, por um momento, mas o reboliço mental atacou-o ao se lembrar de que isso acarretaria na perda da sua conta bancária. De forma alguma ele poderia faltar àquele depósito, mesmo que ele tivesse de esmolar pelas ruas da cidade.
            Desanimado, ocupou uma cadeira junto a uma das mesas de um bar, numa esquina próxima. Era preciso colocar os pensamentos em ordem, para continuar a agir. Por um instante, lembrou-se de que era sexta-feira e de que faltavam poucos minutos para a agência bancária encerrar o expediente daquela semana. Depois, pensou em sumir, desaparecer dali... Fingir que tudo estava sob controle e retornar ao trabalho. Mas, como trabalhar com o pensamento num bendito cheque a que deveria suprir? Pediu uma garrafa de água mineral e bebeu como nômade que, atravessando o deserto, saciasse a sede num oásis qualquer. Olhou no relógio afixado na parede, e gemeu: “caramba, não dá mais tempo.” Nada mais poderia fazer, mesmo que conseguisse o dinheiro para o depósito. A agência fechara há cinco minutos.
            Retornou ao trabalho. De qualquer modo, poderia aproveitar o final da semana para colocar algum serviço em dia. Assim, receberia pelo trabalho e já teria algum valor para alimentar a sua conta corrente na segunda-feira, quando tudo começaria novamente. Olhou para o serviço, já adiantado, e calculou o tempo para executá-lo. Sem a necessidade de se afastar novamente da oficina, poderia terminá-lo no máximo num período de dez horas. Poderia trabalhar, como sempre o fazia, durante um bom período daquela noite e entregá-lo na manhã seguinte. Animou-se.
            Tomou um pequeno lanche e trabalhou. Trabalhou com afinco e nem se lembrou de que o ruído das máquinas e as batidas da marreta nos perfis de ferro laminado poderiam tumultuar o sono dos vizinhos. Ninguém poderia admoestá-lo. Afinal, ele estava apenas labutando para cobrir um cheque sem fundos que, não sabia o porquê, ainda não aparecera na conta corrente. Trabalhou até pouco mais das três horas da manhã, na verdade, quase quatro horas, e resolveu dormir um pouco, com o firme propósito de retornar à oficina logo com o amanhecer daquele sábado. Abaixou a pesada porta de aço e recolheu-se para o merecido descanso.
            Duas horas de sono fora o suficiente.
            Terminar o serviço era fundamental. Instalá-lo antes do meio dia, mais que urgente. O local da entrega não distava mais de vinte quilômetros, numa cidade circunvizinha.
            Ergueu a porta, ajoelhou junto da mesa, e orou como de costume, pedindo a Deus proteção para si e para a família. Mal acabara de se levantar e ouviu o roncar do motor de um carro que estacionava na frente da oficina. Afastou-se um pouco e vislumbrou o rosto de um vizinho que se dirigia à fazenda.
            – Bom dia, Pedrão! – exclamou feliz, embora pudesse perceber que a feição do amigo não era das melhores.
            – Diga-me uma coisa... Você não dorme?
            – Claro!... – fingiu não entender. – Por quê?!...
            – Ouvi as pancadas no ferro a noite inteira!...
            – Caramba, cara, você escutou mesmo? Então, quem não dormiu foi você! – riu-se.
            Pedrão maneou a cabeça, gesticulando um profundo descontentamento e, soltando o freio do carro, deslizou rua abaixo até sumir-se na esquina.
            Entretanto, Jonathan, determinara-se a terminar o seu trabalho, e não se sentiu molestado. Sorriu, zombeteiro, como se questionasse a falta de solidariedade do vizinho que se aborrecera por causa de algumas leves e pequenas marteladas durante a noite, e reiniciou as atividades.
            Certificou-se de que havia combustível suficiente no reservatório do carro, para a pequena viagem. Menos de um quarto do tanque, mas Deus ajuda a quem trabalha, e tirou o veículo da garagem.
            Retocou alguns pontos da pintura, amarrou o material no bagageiro sobre o carro. Depois, ajuntou as ferramentas na caixa, separou duas máquinas de furar, dois ou três sacos de plástico contendo alguns parafusos e buchas, mais um monte de parafernálias, e acomodou tudo no porta-malas.
            Estava pronto para entregar o serviço. Foi até a casa para avisar a mulher que retornaria logo depois do almoço e dividiu com ela os trocados que ainda tinha no bolso. Tomou um pouco do café e saiu.
            Sentia-se bem, e agradeceu a Deus pela misericórdia infinita, enquanto se dirigia à rodovia. Abriu o porta-luvas e retirou uma fita cassete que havia comprado de um grupo de jovens latinos de países diferentes, mas que viajavam pelo mundo divulgando as músicas, ou, mais provável, buscando se sustentar com o ganho nas vendas das fitas que eles próprios gravavam. Introduziu o cassete, ligou o rádio e cantou com eles, enquanto tamborilava com a mão direita no volante. Excitou-se e cantou mais alto, mas nada conseguia lhe tirar a atenção na estrada. Percebeu a presença de uma mulher que atravessava as pistas no sentido diagonal e tocou levemente no freio para diminuir a velocidade. Movimentou rapidamente a alavanca do câmbio da quarta para a segunda marcha, e freou com mais vigor, quando se aproximou da mulher, que demonstrava impedida do raciocínio, mas não deixou de cantar com o rádio no momento em que passava lentamente por ela. Na verdade, Jonathan trazia na alma uma euforia contagiante, como se estivesse prestes de ganhar mais uma batalha que travara pela sobrevivência comercial.
            Parou na frente da loja, estacionou cuidadosamente o carro, e foi logo adentrando-se na casa procurando pelo dono, que ainda não havia chegado. Voltou ao carro, desamarrou as peças presas no bagageiro, colocou-as junto de uma das portas tomando o cuidado para não impedir a passagem de algum comprador, e descarregou tudo o que trouxera no porta-malas. A ausência do titular não o impediria de iniciar a montagem e pôs mãos à obra.
            Mediu em todas as direções, achou o que seria a parte central da loja, riscou na parede, nivelou, mediu novamente, confirmou meticulosamente a altura, o centro, o nível e furou. Furou com um martelete da bosch que lhe custara quase cem mil cruzeiros, mas que não se intimidava ante qualquer tipo de pedra do concreto armado, mesmo que chamasse a atenção dos transeuntes das imediações pelo ruído das onze mil vibrações por minuto que o faziam socar contra a parede. No fundo, no fundo, orgulhava-se de ter aquela máquina e nem se importava com o suor que lhe corria pelo rosto por causa do esforço físico que fazia ao sustentar aquele pequeno monstro elétrico. Tampouco se incomodava com a mistura da poeira que o vibrador fazia se elevar, arremessando-a contra o rosto e a camisa já encharcada pelo suor. Ele continuava furando ritmicamente até completar uma série de furos que receberiam as buchas de plástico. Tentou descobrir o horário, bateu a poeira da camisa, e limpou o rosto com as mãos impregnadas de pó, depois de deixar a máquina ao lado da caixa de ferramentas. Olhou no relógio eletrônico instalado ao lado de um canteiro de flores no jardim da praça, o qual marcava dez horas e trinta minutos.
            Olhou mais uma vez para o interior da pequena loja, procurando pelo titular da casa. Observou a mesa repleta de papéis e a cadeira ainda desocupada, e preocupou-se. Mais de duas horas de trabalho e nenhum sinal da figura principal: o proprietário da loja, única pessoa que faria o pagamento pelo serviço executado. Por um momento, sentiu um frio correr-lhe pela espinha, ao pressentir o inusitado.
            “Só falta esse filho da... esse filho de Deus não aparecer hoje!...” – pensou, retificando um palavrão preso na garganta.
            Estava tenso demais para xingar, e imergiu-se de novo na labuta. Ademais, ele aprendera a ter pensamento positivo, e começou a repetir silenciosamente o que memorizara: Deus supre, agora, todas as minhas necessidades... Deus supre, agora, todas as minhas necessidades... Ai!... caramba!...
            O martelo resvalara, na batida, e acertara-lhe o dedo. Mas, nem por isso se intimidou. Esfregou o dedo, quente e latejante, na altura da coxa e continuou a aparafusar as peças até que, finalmente, concluiu o serviço. Faltavam dez minutos para o meio-dia. E o homem da loja não chegava. Manteve-se calmo, o mais calmo possível. Talvez fosse melhor perguntar ao funcionário, que durante toda aquela manhã se mantivera discreto e não o incomodara, sobre a ausência do patrão, mas abstivera-se pelo medo do previsível: o patrão teve de viajar e só retornará na segunda-feira!...
            Lentamente, muito lentamente, começou a ajuntar as ferramentas e recolocou-as junto das máquinas no porta-malas do veículo. Catou, do chão, alguns parafusos e buchas que haviam se desprendido na hora da colocação, enfiou tudo num pequeno saco de plástico, e colocou no bolso das calças.
            Precisava se lavar e, informando-se sobre o local com o balconista, usou o lavabo do banheiro dos empregados. Lavou o rosto, os braços e as mãos, e não se importou com a poeira que se impregnara nos tecidos das calças e da camisa. Acostumara-se a isso. Olhou-se no espelho e passou as mãos umedecidas sobre os cabelos. Demorou bastante e saiu dali, enquanto ouvia o ruído de uma das portas desenrolando. A loja estava sendo fechada naquele momento.
            Seu cérebro entrou em fusão. Pensou no cheque sem fundos, na correria de toda aquela semana, no dinheiro que receberia ali depois de uma noite maldormida e de tormento para os vizinhos, em tudo o mais que fizera, para sair daquela cidade com um pequeno maço de dinheiro no bolso, tudo de que precisava para conseguir um final de semana tranquilo, ou que fosse menos angustiante. Agora, não encontrar o dono do serviço que acabara de instalar, era tudo o que faltava para voltar à estaca zero.
            Caminhou até a porta que ainda se encontrava aberta, respirou fundo, hesitou. Escutou o silêncio no interior da loja.
            “Talvez, o empregado estivesse incumbido de fazer o pagamento caso ele viesse colocar o serviço encomendado e, naquele momento, certamente, estaria ocupado separando o dinheiro.” – pensou.
            Ancorou-se nesta ideia, e sorriu. Sorriu um sorriso descontraído daqueles de fazer inveja a qualquer ganhador de um grande prêmio. Esticou e contorceu os braços como se tentasse acomodar os músculos surrados pela vibração da máquina e, ainda, pelo excesso de trabalho, moveu a cabeça em diversas direções, olhou para o jardim. Finalmente, ele podia observar as crianças arrastando os seus brinquedos, enquanto outras, ao serem conduzidas pelas mãos maternas, retornavam a casa, coisa que ele não pudera fazer enquanto trabalhava. Mas ele tinha de terminar aquele serviço, e não poderia se permitir ao luxo de atrasar a entrega daquilo que prometera.
            Sábado de manhã, sem falta!... – lembrou-se.
            Lembrou-se do que havia prometido, e cumprira. Não. De modo algum ele deveria pensar em alguma coisa diferente que pudesse interromper o pensamento positivo. Nem mesmo tentar bisbilhotar aquilo que o empregado fazia. Era só uma questão de confiança, e ele tinha de manter a calma. Seria insensatez quebrar aqueles minutos de completo silêncio por causa de mera curiosidade. Pode-se contar dinheiro sem fazer o menor ruído, mas, durante tanto tempo? Tudo bem, talvez contasse a féria do dia, acertasse o caixa, e aí sim, separaria o valor que deveria pagar...
            Quê! Meu Deus! – agitou-se.
            Um estranho ruído quebrara o silêncio do interior da loja, no momento em que Jonathan se despertava da quimera em que se imergira. O soar do fluxo das águas revolvendo no vaso sanitário fê-lo voltar-se para o interior da loja a tempo de observar, incrédulo, a saída do empregado através da porta do banheiro onde há poucos minutos ele se lavara. Imbuiu-se de forças e foi ao encontro do rapaz que, vindo na direção da porta, trazia um molho de chaves na mão e se preparava para sair.
            – O senhor já terminou, podemos ir agora? – inquiriu.
            – Sim... quero dizer, o serviço está pronto, só me resta receber... O Mário não virá hoje? – redarguiu Jonathan.
            – Não, senhor, ele teve de viajar ontem e só retornará na outra semana!... Pediu que o avisasse quando eu saísse...
            – Quando você saísse?!... – irritou-se. – Por que não antes de eu começar a montagem? – explodiu. – Você quer dizer que ele voltará somente na segunda-feira?!
            – Ou terça... Bom final de semana!
            Jonathan sentiu-se jogado para a calçada, enquanto acompanhava o rapaz que já colocava o gancho para abaixar a porta. Nada mais tinha a dizer. Na verdade, nenhuma culpa tinha o funcionário e, quem sabe, nem mesmo o proprietário da loja, que talvez se afastasse por algum motivo muito justo. Abriu a porta do carro e assentou-se junto ao volante. Tentou manter-se calmo. Ele já havia colocado em prática quase tudo que aprendera para não perder o equilíbrio emocional, por mais crítica que fosse a situação. Mesmo assim, ainda não conseguia conter a indignação que lhe brotava da alma, e no silêncio de palavras, começou a descarregar tudo o que fluía, como um ventríloquo que se esconde detrás do movimento labial para esconder a própria identidade. Olhou para a porta da loja, já fechada, e pediu perdão a Deus pelas blasfêmias que, senão outros, a sua própria audição acabara de captar. Ejetou a fita do cassete e virou-a de lado, introduzindo-a logo em seguida. Ligou novamente o rádio, controlou o volume, olhou no marcador de combustível, girou a chave de ignição, e ouviu o ronco do motor. Desejava ardentemente pensar em qualquer coisa que pudesse obstruir aquela indignação que se misturava ao cansaço das últimas vinte e quatro horas, quase ininterruptas, de trabalho. Contornou vagarosamente a praça principal da cidade, percorreu algumas ruelas estreitas até a avenida principal, e sentiu-se só, enquanto observava as casas comerciais fechadas e as ruas quase desertas não fosse pela circulação de alguns ciclistas que retornavam a casa.
            O roncar do motor, agora na estrada, abafava o som do rádio. Aumentou o volume mas não teve vontade de cantar com o grupo, como o fizera anteriormente. Na verdade, ele tinha o semblante triste, obtuso, em cujo olhar podia-se ver espelhado o espírito de uma derrota tão-somente dele. Quis cantar, mas desafinou-se do grupo. Calou-se. Não tinha a vontade de cantar. Entre curvas e retas da estrada, alcançou os dez primeiros quilômetros e deparou-se com a estrada mais visível a longa distância e acelerou entre os canaviais plantados na beira do caminho. Olhou no retrovisor e depois para a estrada. Nenhum outro veículo podia-se ver. Sentir-se-ia completamente só não fosse pelo vislumbre, ao longe, de um vulto que corria na pista de pavimentação asfáltica, vindo na sua direção. Diminuiu a velocidade, reduzindo as marchas drasticamente enquanto enfreava o carro. Olhou rapidamente no retrovisor, percebeu a aproximação de um caminhão, e voltou a concentrar-se na estrada. A silhueta nua de uma mulher mostrou-se nitidamente numa corrida desenfreada. Não viu um acostamento na estrada e acelerou o carro para não causar algum tipo de acidente. Olhou novamente no retrovisor, enquadrou o veículo e a mulher, que ainda corria, percorreu algumas centenas de metros e finalmente conseguiu parar no acostamento. O caminhão diminuiu a velocidade ao vê-lo estacionado e parou, ainda na pista.
            – Viu a mulher pelada? – indagou o carona, rindo.
            Jonathan não respondeu. Sentiu-se ofendido pelo total desmazelo daquele rapaz e esperou o caminhão ir embora. Acelerou o carro e tomou a pista de retorno, voltando ao encalço da mulher nua. Ele conhecia os evangelhos.
            “Estava nu, e me vestistes!”– lembrou-se das palavras de Jesus Cristo, transcritas no evangelho.
            Estava na hora de colocar em prática a determinação do Divino Mestre. Aproximou-se da mulher e estacionou o veículo, não se importando de deixá-lo junto do canavial. Saiu imediatamente do carro e ordenou que a mulher parasse. Quase não percebeu um segundo automóvel estacionar-se em seguida. Não menos assustado, o motorista deixou o veículo.
            – O que aconteceu, meu chapa! – indagou o homem.
            – Ainda não sei... Uê, Manoel, é você? Caramba!... Eu voltava para casa e, de repente, essa mulher surgiu correndo pela estrada... Vamos tentar cobri-la, de alguma forma! Ei, dona! – gritou Jonathan, vendo que a mulher se afastava. – Venha cá, esconda-se no canavial!...
            – O que aconteceu, minha senhora? – perguntou Manoel, aproximando-se dela.
            Assustada, a mulher caminhou para o canavial.
            – Tentemos conseguir alguma roupa, Manoel...
            – Primeiro vamos ver o que aconteceu! – insistiu ele.
            – Preocupar com o que tenha acontecido?!... Sei lá, o que aconteceu! Vou achar uma casa por aí e pedir algum vestido... sei lá. Tome conta dessa desnuda!
            Jonathan conhecia bem a localidade e lembrou-se de uma casa de colonos nas imediações. Havia uma pequena viela em meio ao canavial e caminhou a passos distantes rumo ao casebre. Bateu palmas e esperou algum tempo. Uma senhora mostrou-se na porta.
            – Boa tarde, minha senhora. – disse. – Um amigo e eu encontramos uma filha de Deus totalmente nua ali no asfalto e vamos precisar de alguma roupa para vesti-la...
            – Não tenho nada, não sinhô... – resmungou ela.
            – Algum lençol, sei lá, algum vestido velho...
            – Tem não. – insistiu ela.
            – Tem sim, dona... Garanto que a senhora tem... Nós vamos pagar por ele!
            – Quanto vão pagar?
            – Não sei, nunca comprei vestido!... Quanto quer?
            – Cinco mil...
            Jonathan calou por um momento. Lembrou-se de que tinha apenas mil e quinhentos no bolso.
            – Pago três mil e quinhentos. Tenho mil e quinhentos aqui e vou pegar dois mil com o meu companheiro, está bom assim. A senhora ajuda um pouco, o meu amigo um pouco, e eu também faço a minha parte.
            – Cinco mil e pronto!
            – Três mil e quinhentos e pronto. A senhora já viu o que está na bíblia... É um pecado não vestir quem está nu. É inferno na certa! Ainda mais que é mulher pelada!... Pecado maior ainda!!!...
            Talvez, pelo medo do inferno, a mulher concordou.
            – Tá bom... Tá bom... eu vou buscar uma roupa.
            Jonathan aguardou durante alguns minutos, até que a mulher retornasse com uma camisola nas mãos.
            – Buscou o dinheiro? – perguntou ela, entregando o pedido.
            – Ainda não, mas a senhora vai lá comigo para ajudar a vestir a pobre coitada da nua!
            – Vou não!...
            – Vai sim! – asseverou Jonathan, iniciando a pequena caminhada.
            Teve ímpeto de se voltar para constatar que a mulher já o acompanhava, mas relutou-se, e seguiu a passos firmes. Aguçou os ouvidos e percebeu o tropel na sua retaguarda. Melhor assim. O seu pequeno repertório de persuasão quase se esgotara e, graças a Deus, a mulher tinha medo do inferno, senão ele teria fracassado no intuito de ajudar o próximo.
            Aproximaram-se do Manoel, que vigiava a mulher no meio do canavial.
            – Descobriu alguma coisa, Manoel?... Algo que tenha acontecido com a nua? – indagou Jonathan.
            – Muito pouco... Ela falou que um cara de bicicleta tentou agarrá-la à força.
            – A dona, ali, vendeu uma roupa... Pediu cinco mil, mas eu ofereci três mil e quinhentos. Eu entro com o que eu tenho aqui e você paga o resto. Você é gerente de banco e ganha mais do que eu... Dá logo os dois mil que faltam antes que essa dona resolva não vender o treco.
            Eles pagaram à mulher, que se adentrou no canavial para ajudar a nua a se vestir. Pouco depois, elas estavam de volta e, sem nada dizer, a dona da casa retornou aos seus afazeres. Entretanto, a recém-vestida titubeou, demonstrando o medo de sair dali. Talvez ela fosse uma pobre da região ou alguma psicopata que vagava sem rumo. Por algum motivo, Jonathan reconheceu a mulher. Sem dúvida era ela quem atravessara a pista pela manhã, quando ele se dirigia à cidade onde entregaria o serviço. Não relevou o reconhecimento, e caminhou rumo ao carro.
            – Vamos, Manoel, a nossa missão foi cumprida!
            Na margem da rodovia, eles conversaram a respeito do fato hilariante em que se envolveram e decidiram tocar a vida. Olharam nos dois sentidos da pista, antes de atravessá-la, contudo, Manoel estacou-se, após dar os primeiros passos.
            – Vai ver que foi aquele safado que tentou agarrar essa pobre coitada. – gritou Manoel, atravessando a pista em direção ao ciclista. – Pode parar aí! – exclamou, abrindo os braços na frente do indivíduo.
            Assustado, sem a mínima noção do motivo da nossa presença ali, o homem segurou as varetas do freio da bicicleta até parar desequilibrado e quase caindo.
            – Foi você quem tirou a roupa dessa pobre mulher? – indagou Manoel, apontando para a mulher, que tremia pelo medo de ser novamente atacada.
            O ciclista demonstrava um alto grau de embriaguez.
            – E daí? O que é que você tem com isso? – rosnou, mal conseguindo pronunciar as palavras. – Tirei mesmo, uai! Eu sou homem e ela é mulher!
            – E daí que eu vou quebrar a sua cara, seu filho da p.! Quero ver se você é homem para encarar um homem, seu vagabundo! Cachaceiro de uma figa!
            Manoel se descontrolara. Era forte e demonstrava ira. Entretanto, Jonathan, não menos indignado, mas percebendo o que poderia advir daquela agressão, correu e postou-se entre os dois homens. Estavam totalmente fora de controle.
            – Calma, Manoel, vamos deixar como está!
            – Eu quebro a cara deste vagabundo e sem-vergonha!
            – Esquece, Manoel!... – amenizou Jonathan, tentando dissuadir o amigo. – Já fizemos o necessário!... Você vai machucar o cara, arrumar uma confusão danada e, ainda, vão dizer que você bateu no rapaz porque ele estava bêbado. E, o pior de tudo, é que eu preciso de você no banco na segunda-feira. Você se esqueceu de que eu ainda estou com aquela merda de cheque para cobrir, e que não pode ser devolvido?
            O bêbado grunhiu alguma coisa e Jonathan irritou-se.
            – Agora é comigo! – bradou Jonathan. – Você vai sumir daqui imediatamente antes que eu mude de ideia. Tem outra coisa: tente mexer com essa mulher outra vez e nós vamos colocá-lo na cadeia! Agora, desapareça daqui, porque eu vou esperar você sumir na curva! Nem olhe para trás!
            O homem montou na bicicleta e pedalou cambaleante até desaparecer na curva da estrada.
            – Você ficou maluco, Manoel? Bater num cara desse?
            – A minha vontade é de quebrar a cara desse safado!...
            – Vamos embora, amigo... – disse Jonathan. – Estou cansado e com fome... Trabalhei a noite inteira para entregar um serviço e o cara não estava na loja para me pagar. Tenho de voltar lá, na segunda-feira, para pegar o dinheiro e colocar na conta...
            Ainda nervoso, Manoel nada mais comentou. Entrou no carro e continuou a viagem, enquanto Jonathan, ocupando o seu veículo, retomou o caminho de volta para casa.
            O relógio do banco marcava dez horas e doze minutos naquela manhã de segunda-feira, quando Jonathan entrou na agência bancária repleta de clientes. Ele acabava de chegar da pequena viagem e trazia, no bolso, o dinheiro do pagamento pelo serviço que entregara no sábado, e, na alma apaziguada, a certeza de poder cumprir o compromisso com o depósito. A fila única de pessoas que se dirigiam aos caixas era imensa, e ele não se importou. Volteou o olhar pelo banco até fixá-lo na mesa do gerente. Manoel lia atentamente algum documento entre as mãos. Também, ali, havia uma fila de espera, cinco ou seis pessoas que aguardavam em pé, e Jonathan não quis admoestá-lo com mais uma presença em torno dele. Contudo, não se conteve, ao se lembrar do episódio da estrada, e gritou:
            – Ei, Manoel! De segunda a sexta-feira a gente corre para cobrir os cheques... e no sábado a gente corre para cobrir a mulher pelada no asfalto, não é isso?! – gargalhou.
            Manoel ergueu os olhos e riu abertamente.
            – Eu queria mesmo era quebrar a cara daquele safado sem-vergonha!!!
            Nenhum dos presentes conseguiu entender do que eles falaram, até que Manoel começou a explicar ao cliente que se encontrava na cadeira à sua frente.

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